Anabela Ramos começou por estudar a alimentação dos monges beneditinos do Mosteiro de São Martinho de Tibães e acabou a interessar-se por aquilo que acontecia na cozinha dos mosteiros femininos. E na cozinha das freiras aconteciam doces. É assim que nasce o livro “As viúvas de Braga”, título que pede emprestado o nome a “um doce que existia e que, entretanto, se perdeu”, segundo a autora. No caso concreto, deixou de se fazer pelos anos 40/ 50 do século XX.
“Há uma fotografia do Museu da Imagem, aqui de Braga, que não está datada, mas que se pensa que é dos anos 40, e que tem um cartaz publicitário que diz “Fidalguinhos e Viuvinhas”. Portanto nessa altura ainda se faziam. As Viuvinhas deixaram de se fazer, mas os Fidalguinhos continuaram”.
Mas, atenção, que não se perdeu para sempre. É também esse o papel da investigação em gastronomia – o de permitir preservar e recuperar tradições da cozinha e do prato, que é uma das razões que presidiu à elaboração da Carta Gastronómica do Minho em que Anabela Ramos contribuiu com dois artigos.
“Encontro pela primeira vez as Viúvas na primeira metade do século XVIII. Os monges compravam os chamados “Pasteis dos Remédios” e mais tarde, em 1766, penso que é essa a data, eles denominam-nos pela primeira vez por Viúvas”. Não se iludam com o que parece óbvio. Não eram das mãos daquelas que já não tinham marido que saíam estes doces, com recheio de amêndoa e ovos sobre uma massa exterior quadrada e com os quatro cantos a unirem-se no meio. A história é outra.
“As freiras tinham uma ligação comercial com mulheres viúvas que estavam no exterior e eram essas viúvas que os vendiam”. Ou seja, o batismo veio de quem vendeu e não de quem confecionou.
Anabela Ramos escolheu as “Viúvas” para título do seu livro porque, afirma, foi o doce mais carismático do Mosteiro dos Remédios. Mas não só. É também aquele que tem mais receitas, cinco para sermos precisos. “Essas cinco receitas encontrei-as em livros. Por exemplo, num livro de cozinha de 1902, editado em Coimbra, um outro, num receituário pessoal de uma senhora minha amiga, que colaborou comigo no livro, Margarida Vieira de Araújo, as viúvas ricas, tendo também desenvolvido uma receita a partir dos ingredientes que localizávamos nos livros das freiras, outras duas editadas em livros de cozinha mais recentes, dos anos 80 e 90".
Com o livro, Anabela tentou também que a confeção do doce regressasse às pastelarias de Braga. Uma missão ainda não cumprida. “Na altura fizemos alguns contactos com algumas pastelarias, nomeadamente uma doçaria centenária em Braga, a doçaria São Vicente, mas que, entretanto, fechou e mudou de dono”. Então, mas quem vai a Braga tem onde experimentar, ou nem por isso? “Na pastelaria Veneza consegue. Ainda na semana passada o comi, mas acho que é a única que o vende, para já”.
Da cozinha dos pobres saíram as filhós e as rabanadas
Os doces chegam aos nossos tempos como símbolo de prazer ou de gula – ou ambos – mas lá atrás na história foram encarados como terapêuticos e medicinais. “Só que os doces também eram consumidos em tempos de festa, de alegria, de folga. O açúcar entrava bem! Ao longo dos séculos a sua função terapêutica foi-se perdendo, também pelo desenvolvimento da medicina. Hoje ainda temos essa memória, ainda tomamos rebuçados para a tosse”.
O doce nunca amargou, mas o açúcar não estava ao acesso de todos. Os doces de pobre usavam mais vezes mel do que açúcar e, ao nível de outros ingredientes, a manteiga era rara. Do convento, saía a doçaria da elite, da casa dos pobres saíam os doces que ainda hoje chegam à nossa mesa como as filhós e as rabanadas. “A chamada doçaria regional, que vem, de facto, das populações mais pobres, raramente tem amêndoa e não têm muitas gemas – os ingredientes são diferentes, o que não quer dizer que não sejam muito saborosos”.
Claro que a doçaria não estava só nos conventos. “Estava muito nos conventos e havia alguns que se conseguiam destacar, onde havia freiras-doceiras que tinham fama. Mas no exterior também havia mulheres pasteleiras e doceiras que faziam disso vida. E também devia haver homens, mas, do que sei, era um trabalho mais de mulheres do que de homens”.
Aos mosteiros masculinos estava reservada outra labuta. “Repare que tinham a tecnologia do fabrico do vinho e, a partir de finais do século XVIII, começam a surgir os licores. Essa sabedoria encontramo-la aqui porque tinham alambiques. Desde o século XVI que faziam aguardente”. A localização dos mosteiros femininos e masculinos é, por si mesma, reveladora do que produziam. “Os mosteiros femininos estão mais no centro das cidades, têm cercas mais pequenas, e menos terrenos agrícolas de exploração direta. Os mosteiros masculinos, muitos estão em zonas ermas, como o caso de Tibães que está isolado. Tibães tem uma cerca com 40 hectares. O Mosteiro dos Remédios, no centro de Braga, também tinha uma cerca, mas pequena porque estava no centro da cidade. O Mosteiro de São Bento da Ave Maria, no Porto, que é hoje a estação de São Bento, tinha uma cerca que não devia ultrapassar muito o espaço que atualmente ocupa a zona de embarque até ao túnel, onde entram e saem os comboios”.
Antes de ser caldo verde era caldo de unto
No âmbito do trabalho que tem vindo a fazer de investigação em história da gastronomia, Anabela Ramos, em conjunto com Dulce Freire, coordenadora do projecto Reseed, da Universidade de Coimbra, que também assina um dos textos, foi convidada pelo Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC) para colaborar na Carta Gastronómica do Minho.
“O que acho mais interessante de falar sobre o que é do Minho e está no resto do país, é o caldo verde e a broa. A broa, porque o milho grosso, quando entrou no país, a região onde se deu melhor e onde proliferou foi no Minho. Os minhotos até passaram a ser chamados de pica-milhos, porque só comiam milho”, diz a investigadora.
Sobre o caldo verde, a investigação levou-a até ao “Livro de Receitas e Remédios de Francisco Borges Henriques”, um receituário manuscrito de um cozinheiro que, no início do século XVIII, vivia em Lisboa, e trabalhava para um clérigo ligado ao Tribunal da Inquisição e que depois foi nomeado Bispo de Elvas. Francisco Borges Henriques colige receitas e uma das que tem é o “Caldo de Unto” (unto-gordura, tipo banha) do Minho. “Essa receita é a primeira com denominação regional que está em receituários que são conhecidos. Só nos finais do século XIX vamos encontrar receitas regionais, mas no início do século XVIII já encontrámos esta, o Caldo de Unto do Minho, que no fundo, é um caldo feito com unto e couves-galegas”.
Vai ser preciso esperar até ao início do século XX, segundo Anabela Ramos, para se encontrar outra receita de caldo verde. “Está no livro de receitas de Carlos Bento da Maia, o ‘Tratado completo de cozinha e copa’, publicado em 1904. Ele publica pela primeira vez uma receita que denomina de Caldo Verde e que é a receita como hoje a conhecemos, com batata e com couve. O Caldo de Unto do Minho, do início do século XVIII, levava couves e unto, mas não levava batata porque esta só se vai generalizar na segunda metade século XIX e só então é que entra no caldo”.
Salsa e o louro, os ingredientes-rei da cozinha minhota
Uma das premissas do trabalho sobre a Carta Gastronómica desenvolvido por Anabela Ramos, e a equipa Reseed em que está integrada, foi a análise dos ingredientes presentes nas receitas. “Foi muito engraçado constatar que a salsa e o louro são os condimentos mais presentes na gastronomia minhota”.
Outro ângulo de análise assentou na longa duração, trazendo o contributo do passado até ao presente. “Partimos de lá de trás, há 3 mil anos, e fomos caminhando e percebendo os alimentos que já cá estavam e os que foram chegando ao longo dos séculos e aqueles que estão a chegar hoje, como as framboesas e os mirtilos; no século XVI chegou o milho e depois a batata, no século XIX. O tomate e o pimento também vão entrando desde o século XVIII. E a laranja doce chega no século XVII. No Minho temos pelo menos duas boas regiões de laranja, a laranja de Amares e a laranja de Ermelo”.
Os alimentos foram chegando e foram se instalando. Houve condicionalismos geográficos, como o clima, a proximidade ou distância do mar, e também dinâmicas sociais, como a emigração. “Por exemplo os bolinhos de Jerimú, que é um doce feito de abóbora, só existe no Minho com esta denominação. São bolinhos que se fazem agora no Natal e se formos procurar porque se chamam assim percebemos que Jerimú é uma palavra Tupi, uma língua nativa brasileira, que significa abóbora-menina”. Falta somar as dinâmicas políticas. “Estou a lembrar-me do bacalhau que tanto aqui, como no sul, foi imposto por uma certa vontade política, sobretudo na altura da 2ª Guerra Mundial. O Salazar forçou o consumo de bacalhau porque o mandava pescar na Terra Nova, havia muita quantidade e as pessoas tinham de o comer”.
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