Prólogo
Imagine o que se deposita no fundo negro de um lago. Detritos, arrastados pela corrente ou lançados de barcos, crescem, enredados e macios. Peixes mal-humorados nadam, nas suas estranhas vidas, longe do anzol, numa respiração inseparável do movimento. Posicione-se na margem de um lago, com a ondulação suave a lamber-lhe os sapatos, e imagine quão perto se encontra de um mundo tão silencioso e alheio como a lua, fora do alcance da luz e do calor e do som.
O meu lar é no fundo de um lago. A nossa quinta encontra‑se aí, delimitada pela lama, com os seus despojos indistinguíveis de um navio naufragado. Uma truta lustrosa deambula pelo que resta do meu quarto e da sala onde nos sentávamos em família, aos domingos. Os celeiros e as gamelas apodrecem. O arame farpado, emaranhado, enferruja. A terra outrora fértil marina na indolência.
Uma versão digna de um manual escolar de História acerca da criação do Blue Mesa Reservoir poderia retratar o projeto como heroico, parte da grande visão destinada a transportar água preciosa dos afluentes do rio Colorado para o árido Sudoeste. As boas intenções podem ter tamponado o outrora bravio Gunnison e obrigado o rio a ser um lago, mas a história que conheço é outra.
Eu costumava ter a água pelos joelhos neste troço do Gunnison, quando ele ainda se precipitava, rápido e espumoso, pelo vale da minha infância, com a imensidão vasta e erma do Big Blue por cima dele. Conheci a cidade de Iola quando esta despertava, todas as manhãs, para pequenos-almoços deliciosos e quintas e ranchos cheios de vida, quando o nascer do sol iluminava o lado leste da Main e depois avançava, devagar, cidade fora, passando pelos carris dos comboios e pelo pátio da escola, para incendiar a minúscula janela redonda com vitrais vermelhos e azuis da igreja. Cronometrei a minha vida pelo silvo surdo do comboio das 9h22, pelo das 14h05, pelo das 17h47. Conheci todos os atalhos e habitantes e a mais velha árvore nodosa a produzir regularmente pêssegos dulcíssimos no pomar da minha família. E conheci, talvez melhor do que muitos, a tristeza deste lugar.
As boas intenções transferiram o cemitério de Iola para o cimo de uma colina — com sorte, cada uma das lápides da minha família foi recolocada, com os respetivos despojos —, onde ainda se encontra, atrás de uma vedação de ferro branca, dobrada e retorcida devido ao peso da neve. Por outro lado, as boas intenções afundaram toda a Iola, no Colorado.
Imagine uma cidade em silêncio, esquecida, a decompor‑se no fundo de um lago que outrora foi rio. Se isto o fizer perguntar‑se se as alegrias e a dor de um lugar são arrastadas à medida que as águas sobem e o engolem, posso dizer-lhe que não é verdade. As paisagens das nossas juventudes criam-nos, e transportamo‑las connosco, mergulhadas em tudo aquilo que ofereceram e roubaram, na pessoa que nos tornamos.
PRIMEIRA PARTE
1948–1949
Um
1948
Ele não tinha grande aspeto. À primeira vista, pelo menos.
— Desculpe — disse o jovem, com um polegar sujo e um indicador a agarrar a aba do boné vermelho e esfarrapado. — É por aqui que se vai para a pensão?
Tão simples quanto isto. Uma vulgar pergunta vinda de um desconhecido imundo que percorria a Main Street no momento exato em que eu chegava ao cruzamento com a North Laura.
Trazia as jardineiras e as mãos enegrecidas de carvão, o que presumi ser óleo para eixos ou camadas de sujidade do campo, embora também fosse demasiado escuro para ser isso. Tinha as faces enfarruscadas. A pele bronzeada reluzia por entre gotas de suor. O cabelo, negro e liso, espreitava por baixo do boné.
O dia de outono começara tão costumeiro como as papas de aveia e os ovos estrelados que eu servira aos homens ao pequeno-almoço. Não reparei em nada extraordinário quando fui cuidar da casa e dos animais, dóceis nos seus redis, peguei em dois cestos com pêssegos tardios ao fresco da manhã, fiz as minhas entregas do dia puxando o carrinho oscilante atrás da bicicleta e, depois, voltei para casa para fazer o almoço. Contudo, acabei por perceber que aquilo que é excecional espreita por trás de tudo o que é comum, como o mundo profundo e misterioso sob a superfície do mar.
— É por aqui que se vai para todo o lado — respondi.
Eu não estava a tentar ser engraçada ou a chamar a atenção dele, mas o ângulo da sua pausa e a leve contorção do seu sorriso mostraram-me que a minha resposta o divertiu. Aquele desconhecido fez algo dentro de mim sobressaltar-se, ao olhar-me daquela maneira.
— É uma cidade mesmo muito pequena, é o que quero dizer — disse eu, tentando emendar as coisas, esclarecer que não era o tipo de rapariga em quem os rapazes reparavam ou por causa da qual parassem para lhe sorrir na esquina de uma rua.
Os olhos daquele desconhecido eram tão negros e brilhantes como a asa de um corvo. E afáveis — é isso que mais recordo acerca daqueles olhos depois daquele primeiro vislumbre, até ao olhar final —, uma delicadeza que parecia jorrar de dentro dele e transbordar como um poço demasiado cheio. Analisou-me por um instante, ainda a sorrir, e depois voltou a puxar a pala do boné e continuou a dirigir-se para a estalagem Dunlap’s, quase ao fundo da Main.
Era verdade que aquele passeio a desfazer‑se conduzia a todo o lado. Além da Dunlap’s, tínhamos o Hotel Iola, para pessoas sofisticadas, e a taberna, situada nas traseiras, para pessoas que bebiam; a estação de serviço Jernigan’s Standard, a loja de ferragens e os correios; o café, que cheirava sempre a essa bebida e a bacon; e a Chapman’s Big Little Store, com géneros alimentares e um balcão com produtos mais requintados e demasiados mexericos. Na extremidade oeste de tudo aquilo, ficava o mastro da bandeira, entre o edifício da escola que outrora frequentei e a igreja de ripas onde a nossa família costumava sentar‑se, aprumada e limpa, todos os domingos, quando a mãe ainda estava viva. Para lá disso, a Main Street mergulhava abruptamente na colina, como um ponto final depois de uma frase curta.
Eu ia na mesma direção que o desconhecido — com o fito de arrastar o meu irmão para fora da sala de póquer que ficava atrás do Jernigan’s —, mas não me ia pôr a andar no encalço do rapaz. Parei na esquina e protegi os olhos do sol da tarde para o observar enquanto ele continuava o seu caminho. Caminhava devagar, com descontração, como se o único destino fosse o seu próximo passo, com os braços a balançar ao lado do corpo, a cabeça aparentemente um pouco atrasada no ritmo. A T‑shirt branca e suja bem colada ao corpo por baixo das alças das jardineiras. Era esguio, com os ombros musculados de alguém que trabalha com as mãos.
Como se tivesse sentido o meu olhar, virou-se de súbito e exibiu-me um sorriso breve, resplandecente no rosto manchado. Fiquei sem fôlego por ter sido apanhada a olhar para ele. Uma onda de calor subiu‑me pelo pescoço. Ele puxou o boné como fizera antes, virou costas e continuou a andar. Embora não conseguisse ver o seu rosto, tive quase a certeza de que ele ainda estava a sorrir.
Foi um momento fatídico, sei agora, ao olhar para trás. Porque eu podia ter virado costas e continuado a descer a North Laura, em direção a casa, para tratar do jantar, podia ter deixado que o Seth voltasse para a quinta de livre vontade, aos tropeções, que cambaleasse à porta mesmo diante do pai e do tio Og, suportando o seu próprio inferno. Podia, pelo menos, ter atravessado a Main para o outro lado, pôr um ou outro carro e uma fileira de choupos a amarelecer entre os nossos dois passeios. No entanto, não agi dessa forma, e isso fez toda a diferença do mundo.
Em vez disso, dei um passo vagaroso e mais um, sentindo intuitivamente o significado em cada decisão de levantar, alongar e depois baixar um pé.
Nunca me tinham falado sobre atração. Eu era demasiado nova quando a minha mãe morreu para ter aprendido esses segredos com ela, e, seja como for, não consigo imaginar que os pudesse ter partilhado comigo. Fora uma mulher calada e decente, muito obediente a Deus e cumpridora das expectativas. Daquilo de que me lembro, gostava de mim e do meu irmão, mas o seu afeto só se manifestava dentro de parâmetros rigorosos, educando-nos com um medo solene de como nos iríamos comportar no dia do Juízo Final. Eu vislumbrava, de vez em quando, a sua paixão cuidadosamente escondida a manifestar-se nas nossas costas no mata-moscas de borracha preto ou nos vestígios subtis de lágrimas que limpava com rapidez quando se levantava, depois da oração, mas nunca a vi beijar o meu pai ou abraçá-lo uma única vez. Embora os meus pais gerissem a família e a quinta como companheiros eficientes e fiáveis, não testemunhei, entre ambos, a presença do amor específico entre um homem e uma mulher. Para mim, este território misterioso não tinha mapa.
Com exceção do seguinte episódio: eu estava a olhar pela janela da sala, para o crepúsculo melancólico de outono, logo depois de ter feito doze anos, quando o xerife Lyle parou junto de nossa casa, na alameda de gravilha molhada, com o seu automóvel preto‑e‑branco comprido, e abordou com hesitação o meu pai, no quintal. Através da névoa criada pela minha respiração no vidro, vi o meu pai cair lentamente sobre os joelhos, mesmo ali, na lama humedecida pela chuva. Eu estivera à espera de que a minha mãe, o meu primo Calamus e a minha tia Vivian regressassem, com horas de atraso, da sua entrega de pêssegos pelo desfiladeiro, até Canyon City. O meu pai também estivera à espera, tão inquieto com a sua ausência que passou a noite inteira a juntar as folhas encharcadas que normalmente deixava que se transformassem em composto em cima da relva, ao longo do inverno. Quando o meu pai cedeu sob o peso das palavras de Lyle, o meu coração jovem compreendeu duas verdades imensas: os elementos da família em falta não voltariam para casa e o meu pai amava a minha mãe. Nunca se haviam entregado a manifestações românticas à minha frente ou falado de amor comigo, mas percebi nesse momento que, na verdade, o tinham conhecido, no seu modo silencioso. Aprendi, a partir do seu relacionamento subtil — e dos olhos secos e pragmáticos com que o meu pai mais tarde entrou em casa e partilhou sombriamente a notícia da morte da minha mãe com o Seth e comigo —, que o amor é um assunto privado, a ser alimentado, e até chorado, entre dois seres apenas. Pertence‑lhes a eles, e a mais ninguém, como um tesouro secreto, como um poema íntimo.
Além disso, eu não sabia nada, muito menos da origem do amor, da atração inexplicável por outra pessoa, do motivo pelo qual alguns rapazes podem passar por nós sem reparar, mas o seguinte sente uma atração tão inexorável como a gravidade e, daquele momento em diante, só conhecemos o desejo.
Havia apenas meio quarteirão entre mim e aquele rapaz enquanto caminhávamos pelo mesmo passeio estreito, no mesmo instante, na mesma cidadezinha, algures no Colorado. Segui-‑o, pensando que, de onde quer que ele tivesse vindo, fosse qual fosse o lugar e a experiência, eu e ele tínhamos vivido os nossos dezassete anos — no caso dele, talvez um pouco mais, talvez um pouco menos — completamente alheios à existência do outro nesta terra. Agora, naquele momento, por algum motivo, as nossas vidas intersetavam-‑se, da mesma maneira que a North Laura e a Main.
O meu coração acelerou quando a distância entre nós passou de três casas a duas, depois a uma, e quando me apercebi de que ele estava a abrandar gradualmente.
Não sabia o que havia de fazer. Se eu também abrandasse, ele saberia que eu estava a andar ao ritmo dele, e depois? Ou, ainda pior, passaria por ele e sentiria o ferro do seu olhar nas costas. Ele iria decerto reparar no meu passo desengonçado, nas minhas pernas nuas e nos sapatos de couro usados, no meu velho vestido de escola acastanhado, demasiado pequeno para mim, na banalidade do meu cabelo castanho e liso, por lavar desde o banho de domingo.
Por isso, abrandei. Como se estivesse preso a mim por um fio invisível, ele também abrandou. Voltei a abrandar, e ele abrandou, mal se mexendo. Depois, parou completamente. Não tive outro remédio senão fazer o mesmo, e ali estávamos nós, como duas estátuas idiotas, no meio da Main Street. Pressenti que não se mexeu por brincadeira. Fiquei congelada de medo e indecisão e na primeira agitação desorientadora do desejo. Conhecia aquele rapaz havia apenas alguns minutos e por menos de um mero quarteirão urbano, mas ele já me revolvera as entranhas como seixos num regato.
Não ouvi a mulher roliça do médico ou as rodas de aço do seu carrinho de bebé a aproximar‑se, atrás de mim. Quando a senhora Bernette e o filho apareceram de repente ao meu lado, tentando executar uma ultrapassagem, assustei‑me como um esquilo.
A senhora Bernette sorriu de forma suspeita, com as sobrancelhas finamente arranjadas erguidas, a anunciar uma pergunta não pronunciada enquanto lançava um cortante «Torie».
Mal consegui fazer um aceno de cabeça educado, nem sequer me conseguia lembrar do nome do bebé ou estender o braço para lhe despentear de maneira afável o cabelo louro.
O desconhecido deu um passo matreiro para o lado para que a senhora Bernette pudesse passar. Ela olhou para ele de cima a baixo com curiosidade e sorriu levemente quando ele tirou o boné e disse:
— M’nha senhora.
Ela voltou a olhar para ele de sobrolho franzido, como se estivesse a tentar descobrir um enigma, e depois virou-se e continuou a gingar rua fora.
Nós éramos, de facto, um enigma, eu e aquele rapaz. O enigma dizia assim: qual é a coisa, qual é ela, que depois de presa tem destinos iguais? A resposta era: marionetas no mesmo fio.
— Victoria — disse ele com uma familiaridade descontraída, virando-‑se por fim e encarando-me. — Andas a seguir-me? — Aparentemente, era a vez dele de ser engraçado, e sorriu da sua própria graça com o mesmo divertimento com que o fez daquela que julgou ser a minha.
Gaguejei como uma criança apanhada a roubar uma moeda antes de conseguir enunciar um breve «não».
Ele cruzou os braços bronzeados. Não conseguia perceber se estava a avaliar a sua pergunta, a minha pessoa ou talvez a natureza fortuita do momento.
Quando não consegui aguentar mais o meu próprio desconforto em silêncio, empertiguei‑me, numa compostura falsa, e perguntei:
— Como sabes o meu nome?
— Presto atenção — disse ele. Era direto, mas, de certa forma, modesto. — Victoria — repetiu, lentamente, ao que parecia pelo mero prazer de sentir as sílabas rolarem-lhe na língua. — Um nome de rainha.
O encanto desmentia o seu aspeto desalinhado e, apesar das minhas melhores tentativas de distanciamento, ele conseguia perceber que estava a pensar nisso mesmo. Os seus olhos escuros redobraram o convite antes de ele o enunciar, e depois disse:
— Queres acompanhar-‑me? Quero dizer, aqui — apontou para o espaço ao seu lado —, como deve ser?
Hesitei porque, sim, queria acompanhá‑lo, mas ou o decoro ou um genuíno embaraço de adolescente impediam‑me de o fazer. Ou talvez fosse premonição.
— Não, obrigada — disse eu —, não poderia… quero dizer… nem sequer sei o teu…
— É Wil — exclamou antes de eu poder responder. — -Wilson Moon. — Deixou que o seu nome completo pairasse nos meus ouvidos por um instante; depois, aproximou-‑se de mim com uma mão estendida. — Muito prazer em conhecê‑la, menina Victoria. — Subitamente muito grave, esperou que eu avançasse para dentro do espaço que nos separava e que pousasse a minha mão na dele.
Hesitei, sentindo-me desconfortável, e depois fiz uma reverência. Não sei qual dos dois ficou mais surpreendido. Não fazia uma vénia desde que era menina, na catequese, mas o gesto veio-me à cabeça como a única coisa a fazer, tal era o receio de lhe tocar na mão. Senti-me logo tola e esperei que ele se risse, mas não o fez. O seu sorriso alargou‑se num riso completo, radioso, imenso, genuíno, mas nem um pouco trocista.
Ele acenou com a cabeça de forma cúmplice, baixou a mão, fê-la deslizar para dentro do bolso das suas jardineiras sujas e ficou ali, à minha frente.
Não o consegui entender na altura, naquele instante, suspensa no seu olhar, mas um dia havia de perceber que, na realidade, o Wilson Moon não sentia o tempo como a maior parte das pessoas, ou outras coisas. Nunca se apressava ou contorcia nervosamente nem considerava que um lapso de silêncio entre duas pessoas fosse um recipiente estranho que se devesse preencher com banalidades. Poucas vezes olhava para o futuro, e ainda menos para o passado, mas agarrava o momento presente com as duas mãos para contemplar as suas especificidades, sem pedidos de desculpa e sem a impressão de que deveria ser de outra forma. Eu não podia saber nada disto enquanto me encontrava, imóvel, na Main Street, mas acabaria por conhecer a sabedoria dos seus modos e, com o tempo, aplicar esse conhecimento quando dele mais precisava.
Por isso, sim, mudei a minha resposta e aceitei o convite para percorrer a Main Street nessa tarde de outubro, lado a lado com um rapaz chamado Wilson Moon, que já não era um desconhecido.
Embora a conversa não tivesse passado de meros gracejos e a caminhada houvesse sido breve, na altura em que chegámos à -Dunlap’s e trepámos os degraus gastos do alpendre, nenhum de nós se queria ir embora. Demorei-me com ele junto da porta lascada, com o coração a bater, descompassado.
O Wil não me revelou muito acerca de si. Mesmo quando lhe perguntei se a abreviatura Wil, de Wilson, se escrevia com um ou dois L, limitou-se a encolher os ombros e respondeu:
— Como preferires.
Uma coisa que aprendi acerca do Wilson Moon nesse dia foi que ele tinha estado a trabalhar nas minas de carvão de Dolores e que tinha fugido.
— Fartei-me simplesmente daquele sítio — explicou. — «Vai-te embora», ouvi uma voz dentro de mim dizer. «Vai-te já embora.» — Os vagões cheios de carvão que se dirigiam para a linha Durango-Silverton estavam cheios e prontos a ser arrastados, disse ele, e, quando se ouviu o apito do comboio, este soou como um apelo, longo, penetrante, insistente. Ele sabia apenas que aquelas carruagens se dirigiam a um sítio que não era aquele em que se encontrava. Quando o comboio deu início ao seu lento rangido de arranque, trepou à pressa pela escada enferrujada de uma das carruagens e subiu para uma cama de carvão negro e quente. O patrão avistou-o ao longe e correu atrás do comboio, a berrar e a praguejar, agitando furiosamente o chapéu. Em breve, o capataz e as minas haviam minguado, ao longe, e Wilson Moon expôs o rosto ao vento.
— Nem sequer sabias para onde estavas a ir? Aonde irias parar? — perguntei.
— Não é muito importante — respondeu. — Um sítio é tão bom como qualquer outro, não achas?
O único sítio que eu conhecera até esse momento era Iola e a região circundante, ao longo de um troço amplo e ininterrupto do rio Gunnison. A cidadezinha aninhava-se junto dos contrafortes da imensidão do Big Blue, no lado sul, e das altaneiras montanhas Elk, para oeste e para norte. Um mosaico de quintas e ranchos desenrolava-se como uma cauda longa a acompanhar a extremidade do rio, para este. Eu e o meu irmão tínhamos nascido na quinta que o meu pai herdou do seu, na cama de ferro alta que ocupava metade do quarto amarelo-claro acrescentado às traseiras da casa, o quarto que servia apenas para dar à luz e para as visitas, até o tio Og ter ido viver connosco depois do acidente. A nossa quinta não era nada de especial, nem sequer muito grande, apenas vinte hectares, incluindo os celeiros, a casa e uma alameda de gravilha longa como o uivo de um lobo. Mas, do celeiro à vedação traseira, a nossa terra produzia o único pomar de pessegueiros do condado de Gunnison, onde os frutos cresciam grandes, rosados e doces. As margens sinuosas do Willow Creek talhavam a fronteira leste da nossa propriedade, com a sua água gelada vinda da neve da montanha e ansiosa por se derramar sobre as nossas árvores e modestas fileiras de batatas e cebolas. À noite, o riacho cantava uma canção de embalar do lado de fora da janela do meu quarto, aquietando-‑me na cama de grades onde eu dormira quase todas as noites da minha vida. O nascer do sol sobre a distante montanha Tenderfoot e o apito longo de três comboios por dia a passar pela estação, na extremidade da cidade, eram os meus relógios mais fiáveis. Eu sabia exatamente como o sol da tarde penetrava pela pequena janela da cozinha e ao longo da comprida mesa de pinho nas manhãs de inverno. Sabia que os crocos e as esporeiras‑roxas seriam as primeiras flores silvestres a surgir na quinta, todas as primaveras, e que os epilóbios e os solidagos seriam as últimas. Sabia que um grupo de andorinhas-de-dorso-acanelado desceria sobre o rio com todos os ovos de efémeras e que seria este o momento exato em que uma truta‑arco-íris se ergueria depois do lançamento feito pelo pai. E sabia que as tempestades mais terríveis, escuras e assustadoras como o demónio, fustigavam quase sempre os picos a noroeste e que cada canto de ave e de corvo e de pega se silenciaria no instante anterior ao desabar do céu.
Por isso, não, na minha cabeça, os sítios não eram exatamente iguais, e perguntei-me por que motivo aquele rapaz não parecia saber nada acerca do que era ter um lar.
— E as tuas coisas? — perguntei, intrigada com a vida de vagabundo.
— A mesma coisa — disse ele com um encolher de ombros e um sorriso, como se soubesse algo acerca dos nossos pertences que eu não sabia, o que, no fim, se revelou acertado. Ele iria ensinar‑me quão verdadeira poderia ser uma vida esvaziada de tudo o que não fosse essencial e que, quando se pensava nisso, aquilo que importava acima de tudo era a determinação de continuar a viver. Se me tivesse dito isto nessa altura, eu não teria a capacidade de acreditar nele. Mas o tempo é mais forte do que nós.
Eu não conseguia pensar numa desculpa para o seguir até à Dunlap’s. Mesmo que não estivesse na companhia de um rapaz desconhecido, uma rapariga não entrava numa pensão barata sem ter um motivo adequado e um acompanhante de confiança. Também eram quase horas do jantar, e eu ainda tinha a tarefa sórdida de arrastar o Seth para fora da espelunca do póquer e de o levar para casa antes de o pai chegar, depois de ter salvado o resto do feno do senhor Mitchell.
Sugeri-lhe que estava na altura de nos separarmos, suspirando:
— Bem… — Mas não comecei propriamente a afastar‑me. Esperei que pegasse na deixa, desse o passo seguinte, mas, mais uma vez, ele manteve uma imobilidade relaxada, sorrindo-me, olhando de vez em quando para o céu, como se estivesse a ler algo nas primeiras nuvens finas do fim de tarde.
— Acho que é melhor ir andando — disse eu, por fim. — Tenho de fazer o jantar e tal…
O Wil voltou a olhar para o céu e depois perguntou-me se nos podíamos encontrar no dia seguinte, para eu lhe mostrar os sítios todos, para dividirmos uma fatia de tarte ou coisa parecida.
— Afinal — acrescentou —, és a única pessoa que conheço nesta terriola.
— Bem, não me conheces — disse eu. — Pelo menos, não muito bem.
— Claro que conheço. — Piscou o olho. — És a menina Victoria, a rainha de Iola. — Inclinou-se e fez um floreado com a mão numa reverência trocista como se estivesse diante de um elemento da realeza, e eu ri-me. Depois, ficou ali a olhar para mim durante tanto tempo que pensei que me iria derreter como chocolate sob os últimos raios de sol que desciam pelo alpendre. Ele não disse nada, mas senti‑me como se ele soubesse coisas impossíveis a meu respeito. Aproximou-se mais. Inspirei fundo, sentindo pela primeira vez o seu odor almiscarado e intenso e estranhamente convidativo, e olhei por um instante para os seus olhos negros sem fundo.
Como se vive durante dezassete anos sem sequer se considerar se alguém nos conhece? A ideia nunca me tinha ocorrido, de que alguém pudesse ver o coração das coisas e pronto. Permaneci nos degraus da pensão a sentir-me transparente, erguida contra a luz de uma forma que nunca imaginei antes de conhecer o Wilson Moon.
Timidamente, recuei; depois, aceitei encontrar‑me com ele no dia seguinte. Queria mais dele, como quem anseia pela luz do sol demasiado tempo escondida atrás das nuvens. Porém, antes de podermos partilhar um plano — escolher uma hora, um sítio, um pretexto —, uma voz familiar gritou-me do meio da Main Street e atingiu‑me como uma pedra.
— Torie!
Ali estava o meu irmão, o Seth, a balançar no meio da Main, com a mão esquerda agarrada ao gargalo de uma garrafa de cerveja preta.
— Torie, afasta-te desse filho da mãe nojento! — praguejou, apontando para o Wil com a garrafa, entornando cerveja em poças escuras na estrada de terra.
— O meu irmão. Bêbedo — suspirei para o Wil, virando-me rapidamente. Desci os degraus da Dunlap’s, lançando para trás das costas um exasperado «tenho de ir», e fui a correr para junto do Seth antes de ele poder meter‑se em sarilhos.
— Quem é o filho da puta? — resmungou o Seth através do Lucky Strike que lhe pendia dos lábios, dirigindo a pergunta mais ao Wil do que a mim.
— Não é ninguém — disse eu, empurrando o Seth rua abaixo, por trás, com uma mão em cada um dos ombros, como se estivesse a segurar as rédeas de uma mula relutante, conduzindo‑o de volta ao cruzamento da North Laura com a Main. Embora fosse mais de um ano mais novo, o Seth ultrapassou-me em altura mesmo antes de fazer quinze anos e crescera, pelo menos, cinco centímetros nos seis meses que tinham decorrido desde então, mas eu não era uma rapariga alta, e, comparado com outros rapazes da sua idade, o Seth ainda era baixo e entroncado, com a constituição física e o temperamento de um pugilista. Procurei afastá-lo do campo de visão do Wil e dos outros curiosos e encaminhar-nos para casa.
— Um rapaz qualquer a pedir indicações, só isso — menti, embora nem quinze minutos antes aquilo tivesse sido verdade. — Está apenas de passagem.
— Filho da mãe moreno…
— Tresandas, Seth — interrompi‑o. — Cheiras pior do que a pocilga que é melhor te pores a limpar quando o pai chegar a casa.
— Que se lixe o pai — exclamou, arrastando a fala com a coragem dos bêbedos, dando uma baforada longa no cigarro e atirando-o depois para o chão.
— Podias fazer aquilo que te mandam, pelo menos, uma vez na vida e poupar‑nos a todos de uma data de confusões — disse eu, pisando o Lucky Strike e lançando de seguida uma olhadela por cima do ombro para o Wil, ainda de pé, no alpendre da Dunlap’s, a ler-‑me como uma história de mistério.
— Mais depressa esses porcos hão de voar daquele chiqueiro cheio de porcaria do que eu aceitarei ordens de ti, miúda. Não penses que podes…
— Cala-te, Seth — disse eu, suspirando. — Cala-me só essa matraca. — Não era capaz de ouvir nem mais uma palavra. Detestava-o naquele instante, mais do que nunca. O meu ódio já tinha algo que ver com o Wil. Há muito que tinha que ver com o pai e com o tio Og e com a mãe e com o meu primo e a minha tia, que começava a esquecer. Mas, acima de tudo, a minha aversão pelo Seth era crua e rude como um cardo, tendo-se tornado um pouco mais cortante a cada dia das nossas vidas.
Comecei a empurrá‑lo por trás com toda a força. Ele recebia o golpe, tropeçava para diante, depois recebia mais um safanão, praguejando, queixando-se e bebericando cerveja o caminho inteiro, mas sem nunca me devolver a agressão. Talvez estivesse demasiado embriagado para querer saber ou talvez soubesse tão bem quanto eu que tinha de estar na pocilga quando o sol se afundasse por trás da serra.
Percorremos a North Laura. Ao fundo desta, um carreiro estreito e muito pisoteado para a nossa quinta serpenteava através da relva, passando a extremidade do terreno coberto de pinheiros da doida da Ruby-Alice Akers e atravessando um amplo campo relvado. Era o caminho mais rápido entre a quinta e a vila, e eu e o Seth tínhamo-lo percorrido milhares de vezes juntos. Quando éramos pequenos, a nossa mãe encarregou o Seth de olhar por mim quando caminhávamos por aquele carreiro, à vinda ou à ida, mesmo sendo ele mais novo e bastante menos responsável, simplesmente porque era rapaz. À medida que fomos crescendo, eu olhava por ele, não por alguém me ter dito para o fazer, mas porque era necessário, tanto por mim como por ele, e pelo pai também. Mas, por mais que tentasse, não conseguia resgatar o Seth dos seus próprios disparates, e estava farta de tentar.
Fi-lo percorrer o caminho a toda a brida, eu a empurrá-lo, ele a tropeçar e a dizer palavrões. Então, o Seth deixou cair a garrafa da cerveja da mão. Antes que a minha mente conseguisse registar que a garrafa estava no carreiro, pus o pé mesmo em cima dela e tombei para a frente, empurrando o Seth para o chão e caindo com força na terra, sobre a anca e o cotovelo direitos. Pequenas coisas: a perda de controlo da mão de um rapaz ébrio, uma garrafa que cai, um tornozelo torcido, a manga de um vestido rasgada. Mas é muitas vezes a pequena reviravolta do destino que altera mais profundamente as nossas vidas — o grito de aviso do silvo de um comboio de transporte de carvão, a pergunta de um desconhecido num cruzamento, uma garrafa castanha caída por terra. Por mais que tentemos convencer-nos do contrário, os momentos em que nos tornamos nós próprios não podem ser delicadamente apanhados como o pêssego mais maduro e mais saciante do ramo. Nos intermináveis tropeções rumo a nós próprios, tomamos a colheita que nos coube em sorte.
Fico por terra por um instante de desorientação. O Seth riu-se baixinho e depois calou-se. A dor irradiava pela canela. Enquanto erguia com cautela o peito do solo, os braços do Wil deslizaram subitamente por baixo de mim com a segurança de um noivo a pegar a noiva ao colo. E, embora não houvesse ombreira de porta a transpor — apenas o campo de vergas‑de-ouro murchas e ervas altas e quebradiças —, lembro-me daquele momento como se fosse a nossa entrada. Não estremeci ao seu toque, não protestei perante o seu suave abraço quando me levantava com facilidade e me aninhava contra o seu peito sujo de carvão, não tentei caminhar de maneira desastrada sobre o tornozelo já a inchar.
— Seguiste-me — disse, sem inflexões de voz.
— Sim — foi tudo o que respondeu, baixando o olhar para o Seth, que estava deitado de lado, na berma do carreiro, sem sentidos. — O que fazemos com ele? — perguntou o Wil.
— Nada de nada — respondi, para divertimento do Wil. Nada de nada, repeti mentalmente, chocada com a minha rebelião tanto em palavras como em atos. Deixaria o meu irmão a dormir na terra. Partiria, nos braços daquele desconhecido.
Estremeci. Fosse da dor, da raiva ou das primeiras centelhas do amor, não sei — talvez de todas elas —, mas o meu corpo tremeu como se o Wil me tivesse tirado de um lago gelado. Os meus braços agarraram‑se ao seu pescoço forte enquanto ele caminhava. A sua cabeça oscilava um pouco com o movimento, como se estivesse a acenar em sinal de concordância. Senti-me leve como uma criança nos seus braços, igualmente confiante como uma criança. Não me era natural aceitar ajuda e proteção com facilidade, ter uma desconfiança tão reduzida nas intenções de um rapaz desconhecido. No entanto, aquela rapariga nos seus braços era eu. Percorremos todo o caminho que eu pisara durante toda a minha vida de uma forma que nunca antes conhecera, a sentir que tudo em volta se transformara subitamente. O meu pai talvez já estivesse à minha espera na quinta, por essa altura, e o tio Og estava de certeza sentado na sua cadeira de rodas junto da janela ou no alpendre da frente, como fazia durante a maior parte dos dias — cada um deles provavelmente a ver aquele desconhecido a transportar‑me pelo campo. Contudo, depois de anos a recear o julgamento do pai e a raiva do tio Og, não quis saber do que pudessem pensar ou de como pudessem reagir. Em comparação com a imensidão dos braços do Wil à minha volta, o pai e o tio Og e a autoridade e o decoro, todos eles encolhiam. Até as montanhas em volta, até as consequências, pareciam pequenas e insignificantes.
Eu deixara a quinta nessa manhã como uma rapariga normal num dia normal. Ainda não conseguia identificar que novo mapa se abria dentro de mim, mas sabia que regressava a casa de forma extraordinária. Sentia-me como os exploradores que estudara na escola deviam ter-se sentido quando divisaram uma terra distante e misteriosa a partir do seu mar aparentemente eterno. Transformada de súbito no Magalhães do meu próprio interior, não soube o que havia descoberto. Pousei a cabeça no ombro largo do Wil e perguntei-me de onde e de quem ele teria vindo e quanto tempo um vagabundo permaneceria num sítio.
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