A famosa cereja do Fundão que já uma marca nacional e que se apresenta orgulhosa nos menus de restaurantes e nas prateleiras dos supermercados, praças e mercearias é, na realidade, em muito proveniente de uma pequena aldeia do concelho, conhecida antes do marketing precisar de outros batismos como a terra das bolinhas de ouro. As bolinhas de ouro são as cerejas da terra e a terra chama-se Alcongosta. E, por estes dias, Alcongosta celebra a Festa da Cereja que já se tornou um marco nas festas populares e gastronómicas do país. A aldeia enche-se, as ruas sobem-se e descem-se - há pouco território plano - e sobretudo a cereja serve-se nas mais variadas formas e, em muitos locais, acabada de apanhar.
Quem visita a aldeia fora dos dias de festa não deixa de se surpreender com a quantidade de portas abertas para oferecer os mais diversos petiscos - da cereja em caixa à ginjinha de cereja, ao gin de cereja, aos bombons de cereja ou às espetadas de cereja - mas também, como mandam as boas festas portuguesas de verão, ao pão cozido no forno a lenha, ao frango assado e aos bolos tradicionais. Há de tudo em lojas e casas de petisco improvisadas em garagens e rés-do-chão que se juntam a outras, em notória minoria, cujas portas se mantém abertas ao longo do ano.
Logo que chegamos a Alcongosta, percebemos a logística montada. Dois GNR orientam quem chega de carro para os parques de estacionamento e funcionários orientam a partir daí os lugares disponíveis. Circula-se devagar porque há muitos a chegar e alguns - menos - a sair. Além dos carros, estacionam também alguns autocarros e há um parque só de autocaravanas que ali se instalaram para o fim de semana da festa. O acesso à aldeia faz-se por um caminho de terra batida e logo que se entra no casario percebe-se que estamos em modo festa de verão. Cheira a petisco, o calor do fim da tarde já permite maior mobilidade e há rufos de bombo aqui e ali.
Veja aqui imagens de Alcongosta em dia de Festa da Cereja
Mas vamos à cereja. “Então e que tal a cereja este ano?”, esta é a pergunta que os agricultores mais ouvem e a resposta que mais repetem. A resposta deste ano anima quem responde e quem pergunta: a cereja é boa e há muita. O Inverno foi mais comprido e o frio chegou quando era preciso. Agora é colhê-la e prová-la. A caixa de dois quilos é vendida, em média, a cinco euros, mas o preço não é bem científico nem tabelado.
Do alto de um muro, um homem apanha cereja e acena-nos. “Venham cá, apanhem-na e provem”. Chegar lá implica ou saltar o muro ou ir à volta para nos encontrarmos num espaço que é mais do que um quintal mas menos que uma exploração agrícola. Cheio de cerejeiras. O dono, Luís Martins, nasceu em Alcongosta, fez a vida por Lisboa, mora grande parte do ano na Amadora, mas desde que se reformou da vida de bancário vai amiúde à terra e as cerejas são um dos seus cuidados. Estas cujo esplendor admiramos são da sua casa, mas tem mais numa terra que arrenda. Diz que não vale a pena ir vender para o mercado abastecedor de Lisboa porque “lá não sabem distinguir se são daqui ou não”. Mas da terra, quando chega a época, saem todos os dias “três ou quatro camiões” que levam as bolinhas de ouro até à capital.
Penduradas nas árvores veem-se garrafas de litro e meio de água mas com um líquido cor de vinho lá dentro. É vinagre de sidra misturado com vinho tinto, conta-nos Luís Martins. Uma mezinha para combater um inimigo que atacou as cerejas nos últimos dois anos: “uma mosca que vem do Japão, a Suzuki, que enche de bicho a cereja”. Mas contrariando o adágio popular que diz que não se apanham moscas com vinagre, aqui apanham-se mesmo. Elas entram na garrafa atraídas pelo líquido e já não saem, salvando-se assim a cereja. Este ano, apesar das garrafas-sentinela, não foi preciso grande combate porque não se deu pela presença do bicharoco.
Encostada ao muro está uma escada artesanal para chegar ao topo da árvore. “Suba, suba”. Lá subimos, a escada bamboleia, subimos mais um degrau e eis que estamos à altura do muro e frente a frente com a copa das cerejeiras carregadas de brincos de princesa como as avós chamavam ao par de cerejas. Depois é colhê-las com jeitinho, não arrastar a folha atrás, pegar pelo par se possível e resistir a provar de forma a encher os cestos que nos esperam cá em baixo.
E é por causa dos cestos que subimos mais umas ruas até pararmos à porta de Tó Nunes, o mestre cesteiro da terra, que há mais de 70 anos se dedica a ofício. Tem a sua oficina devidamente decorada com ramos de cerejeira - das suas cerejeiras - e caixas com letreiro onde se lê “cerejas biológicas”. “Estas não levam nenhum produto de tratamento, por isso é que digo que são biológicas. Quando os filhos e os netos cá vêm gosto que comam à vontade e é isso que trago até aqui para as pessoas provarem”.
A cereja é do Fundão, mas Alcongosta é quem faz a festa e a fama.
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