
A obra, a primeira peça longa do Nobel da Literatura 2005, data de um tempo em que a devastação deixada pela II Guerra Mundial estava ainda bem presente, assim como a noção da facilidade com que a vida podia chegar "à beira do desastre”, uma atmosfera desolada que encontrou expressão no chamado “teatro do absurdo”, corrente afirmada por Pinter no panorama artístico britânico, como destaca o Teatro do Bairro no ‘dossier’ de apresentação da obra.
“Festa de Aniversário” decorre numa pensão à beira-mar, onde um casal cuida de Stanley, o único hóspede. No dia do seu aniversário, a chegada de dois visitantes perturba o equilíbrio local, dando origem a “jogos aparentemente inocentes” que ganham “terríveis repercussões”. Por outras palavras, segundo o crítico Michael Billington, "uma sala de estar banal que se abre aos horrores da história contemporânea".
Stanley, que tenta escapar ao seu passado, revela-se incapaz de evitar o confronto com os recém-chegados. Progressivamente, perde caráter, força de vontade, transfigurado pela ansiedade e o medo.
Tudo se desenrola através da concisão dos diálogos de Pinter, diálogos aparentemente banais, aparentemente desconexos, plenos de hesitações, de silêncios que tudo dizem, e que permitem “múltiplas matizes de significado”.
A dramaturgia de Pinter é feita de personagens e situações aparentemente comuns, subvertidas por algo inesperado, como a chegada de um estranho, acabando por expor, quase sempre, sentimentos de medo e solidão, intensificar tensão e insegurança, encontrar finais inesperados.
“É um momento estranho, o momento de criar personagens que, até àquele instante, não tinham existência”, disse Harold Pinter na intervenção que levou a Estocolmo, quando recebeu o Prémio Nobel, em 2005. “O que se segue é irregular, incerto, até alucinatório, embora, por vezes, possa ser uma avalanche imparável”.
No entanto, prosseguiu, se “a linguagem na arte permanece uma transação altamente ambígua, uma areia movediça, um trampolim, um poço congelado que pode ceder, […] a busca pela verdade nunca pode cessar, não pode ser adiada”.
“Tem de evitar-se, a todo custo, a moralização”, insistiu o escritor referindo-se ao “conjunto de problemas” levantados pelo caráter político do teatro.
“A objetividade é essencial. As personagens devem ter a liberdade de respirar o seu próprio ar; o autor não pode confiná-las nem restringi-las para satisfazer o seu próprio gosto, disposição ou preconceito. Tem de estar preparado para abordá-las por diversos ângulos, através de uma gama completa e desinibida de perspetivas, surpreendendo-as, por vezes, mas concedendo-lhes a liberdade de seguir o caminho que quiserem”, afirmou.
Nesse ano de 2005, ainda marcado pela invasão do Iraque, justificada pela jamais provada existência de armas de destruição maciça, Pinter não hesitou em estabelecer o contraponto: “A linguagem política, tal como utilizada pelos políticos, não se aventura neste território […]. A verdade é algo completamente diferente”, afirmou, acrescentando que a verdade não tem a ver com processos de conquista ou manutenção do poder, mas sim, por exemplo, “com a forma como os Estados Unidos entendem o seu papel no mundo e como escolhem encarná-lo”.
“Na minha peça ‘Festa de Aniversário’, [...] permito que uma vasta gama de opções opere numa densa floresta de possibilidades antes de, finalmente, me concentrar num ato de subjugação”, disse então o dramaturgo.
Harold Pinter (1930-2008) cresceu no East End de Londres. Optou pelos estudos na Royal Academy of Dramatic Art, que abandonou após os dois primeiros semestres. Preferiu juntar-se a companhias de repertório, optando então pelo nome artístico David Baron. Para a escrita, manteve Harold Pinter.
As primeiras peças, curtas, datam de 1956: "The Room" e "The Dumb Waiter", obras com que estabeleceu desde logo o tom da sua chamada "Comedy of Menace" (Comédia da Ameaça), conjugando situações aparentemente de comédia, risíveis, por vezes ridículas, com uma sensação de perigo iminente. Basicamente, uma tragédia feita de elementos cómicos. É o que acontece em "Festa de Aniversário".
Na altura, a obra surgiu como um “objeto estranho” perante o público britânico, mas teve de imediato a seu favor o crítico Harold Hobson, do jornal The Times, que escreveu sobre a estreia: “Teatralmente, ‘Festa de Aniversário’ é cativante. É espirituosa. As personagens são fascinantes. O enredo, que consiste em todo o tipo de arabescos verbais e explorações da memória e da imaginação, como se saísse por uma torneira, é de primeira qualidade. Toda a peça tem a atmosfera de terror delicioso, inatingível e de pôr os cabelos em pé que também possuem as melhores histórias do mundo. Pinter percebeu um dos factos mais básicos da existência humana: vivemos à beira do desastre”.
“Festa de Aniversário” foi estreada em Portugal em 1967, sob a direção de Artur Ramos, que assinou a tradução com Jaime Salazar Sampaio – a mesma tradução que outras companhias puseram em cena, como os Artistas Unidos em 2012, e que se encontra editada pela Relógio d’Água, no primeiro de dois volumes dedicados ao teatro de Harold Pinter.
A produção do Teatro do Bairro conta com interpretações de Adriano Luz, Ana Nave, Cláudio da Silva, Graciano Dias, João Barbosa e Vera Moura.
“Festa de Aniversário” estará em cena de 19 de março a 20 de abril, de quarta a domingo, com sessões legendadas em inglês às quintas-feiras.
Comentários