CAPÍTULO 1

No quadragésimo oitavo andar de uma torre reluzente no extremo sul de Manhattan, Mitch McDeere estava sozinho no seu gabinete, a olhar pela janela para Battery Park e para as águas concorridas que ficavam mais além. Barcos de todos os tamanhos e feitios atravessavam o porto. Cargueiros gigantescos apinhados de contentores aguardavam quase imóveis. O Staten Island Ferry contornava lentamente Ellis Island. Um cruzeiro cheio de turistas estava de saída para o mar. Um monstruoso iate fazia uma entrada grandiosa na cidade. Uma alma corajosa num catamarã de quatro metros e meio ziguezagueava por ali, esquivando-se de todos os obstáculos. Milhas acima da água, pelo menos cinco helicópteros zumbiam como vespas zangadas. Ao longe, viam-se camiões parados, uns atrás dos outros, sobre a ponte Verrazano. A Estátua da Liberdade observava tudo isto do seu majestoso pedestal. Era uma vista espetacular que Mitch tentava apreciar, pelo menos, uma vez ao dia. Conseguia fazê-lo de vez em quando, mas a maioria dos dias era demasiado caótica para que houvesse momentos de indolência. Era pago para trabalhar, e a sua vida regia-se por horários, tal como a de outras centenas de advogados que ocupavam o edifício. A Scully & Pershing tinha mais de dois mil espalhados pelo mundo e gabava-se de ser a principal firma de advocacia internacional do planeta. Os seus sócios em Nova Iorque — e Mitch era um deles — recompensavam-se com escritórios de maior dimensão bem no centro financeiro da cidade. A firma era agora centenária e exalava prestígio, poder e dinheiro.

Olhou para o relógio, e a contemplação da vista chegara ao fim. Um par de associados bateu à porta e entrou para mais uma reunião. Sentaram-se à volta de uma mesinha enquanto uma secretária lhes oferecia café. Declinaram a oferta e ela foi-se embora. O cliente era uma companhia de navegação finlandesa que estava a ter problemas na África do Sul. As autoridades locais tinham embargado um cargueiro com aparelhos eletrónicos provenientes de Taiwan. Vazia, a embarcação valia cerca de cem milhões. Com a carga completa, valia o dobro, e os sul-africanos estavam aborrecidos com algumas questões aduaneiras. Mitch já tinha estado por duas vezes na Cidade do Cabo no último ano e não estava propriamente desejoso de lá voltar. Ao fim de meia hora, dispensou os associados com uma lista de instruções e recebeu outros dois.

Sérgio Godinho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 20 de junho, uma quinta-feira, pelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Vida e Morte nas Cidades Geminadas", editado pela Quetzal.

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Às cinco da tarde em ponto, falou com a secretária, que estava de saída, e passou pelos elevadores em direção à escada. Para subir ou descer poucos andares, evitava os elevadores, para fugir à tagarelice sem sentido de advogados conhecidos e desconhecidos. Tinha muitos amigos na firma, apenas um punhado de inimigos conhecidos, e havia sempre vários associados recentes e aspirantes a sócios minoritários com rostos e nomes que deveria reconhecer. Muitas vezes, não os reconhecia e também não tinha tempo para analisar a base de dados da firma para os tentar memorizar. Muitos deles iam desaparecer antes de sequer saber os seus nomes.

Usar a escada permitia-lhe exercitar as pernas e os pulmões, além de lhe recordar sempre que já não estava na universidade e, como tal, que já não jogava futebol americano nem basquetebol no campeonato interturmas, coisa que conseguia fazer, então, durante horas seguidas. Tinha quarenta e um anos e mantinha uma forma física razoável porque tinha cuidado com a alimentação e dispensava o almoço pelo menos três vezes por semana enquanto treinava no ginásio da firma. Outra regalia reservada aos sócios.

Saiu no quadragésimo segundo andar e dirigiu-se ao gabinete de Willie Backstrom, outro sócio, um que tinha o privilégio de não cobrar à hora. Willie tinha a invejável tarefa de dirigir os programas pro bono da firma e, embora tivesse um horário a cumprir, não enviava faturas. Não havia ninguém para as pagar. Os advogados na Scully ganhavam muito dinheiro, sobretudo os sócios, e a firma era famosa pelo seu compromisso para com o pro bono. Oferecia-se para casos difíceis pelo mundo fora. Todos os advogados tinham de doar pelo menos dez por cento do seu tempo a várias causas, todas aprovadas por Willie.

A firma dividia-se por igual no que respeitava ao trabalho pro bono. Metade dos advogados gostava disso, porque significava uma bem-vinda pausa na rotina stressante de melindrosos clientes empresariais. Durante algumas horas por mês, um advogado podia representar uma pessoa a sério, ou uma organização sem fins lucrativos em dificuldades, sem se preocupar com faturar e ser pago. A outra metade concordava hipocritamente com a nobre ideia de retribuir, mas considerava-a um desperdício. Aquelas duzentas e cinquenta horas por ano podiam ser muito mais bem gastas a enriquecer e a melhorar a sua posição junto das diversas comissões que decidiam quem era promovido, quem se tornava sócio, e quem acabava por ser dispensado.

Willie Backstrom assegurava a paz, o que na realidade não era muito difícil, porque nenhum advogado, independentemente da sua ambição, ousaria alguma vez criticar os agressivos programas pro bono. A Scully até atribuía prémios anuais aos advogados que iam para lá das suas obrigações ao serviço dos menos afortunados.

Hoje, Mitch passava quatro horas por semana a trabalhar com um alojamento para sem-abrigo no Bronx e a representar clientes que lutavam contra ordens de despejo. Era trabalho de escritório seguro e limpo, precisamente o que ele queria. Sete meses antes, tinha visto um cliente que estava no corredor da morte no Alabama a proferir as suas últimas palavras antes de ser executado. Tinha passado oitocentas horas ao longo de seis anos a tentar, em vão, salvá-lo, e tê-lo visto a morrer foi devastador, o derradeiro fracasso.

Livro: "A Troca"

Autor: John Grisham

Editora: Bertrand Editora

Data de Lançamento: 20 de junho de 2024

Preço: € 18,80

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Mitch não sabia o que Willie queria, mas ter sido chamado era um mau presságio.

Willie era o único advogado na Scully que usava rabo de cavalo, e um bem feio, por sinal. Era grisalho e combinava com a barba e, se fosse há uns anos, um superior hierárquico tê-lo-ia mandado livrar-se dos dois, mas a firma estava a esforçar-se para se livrar da sua imagem fossilizada de clube de colarinhos brancos, cheio de homens igualmente brancos de fato escuro. Uma das mudanças radicais foi acabar com o dress code. Willie deixou crescer o cabelo e as patilhas, e passou a trabalhar de calças de ganga.

Mitch, ainda de fato escuro, mas sem gravata, sentou-se do outro lado da secretária enquanto os dois faziam conversa de circunstância. Finalmente, Willie foi direito ao assunto:

— Bem, Mitch, quero que dês uma vista de olhos a um caso que temos no Sul.

— Por favor, não me digas que o tipo está no corredor da morte.

— O tipo está no corredor da morte.

— Não consigo fazer isso, Willie. Por favor. Tive dois casos assim nos últimos cinco anos e ambos acabaram em injeção letal. O meu histórico não é muito bom.

— Fizeste um ótimo trabalho, Mitch. Ninguém teria conseguido salvar aqueles dois.

— Não posso aceitar mais um.

— Podes ao menos ouvir-me?

Mitch cedeu e encolheu os ombros. A predileção de Willie por casos que envolviam reclusos no corredor da morte era bem conhecida e poucos advogados na Scully conseguiam dizer-lhe que não.

— Está bem.

— Ele chama-se Tad Kearny e tem noventa dias. Há um mês, tomou a estranha decisão de despedir os advogados que o defendiam, todos eles, e olha que tinha uma grande equipa.

— Mas isso é de loucos!

— Oh, ele é louco, completamente louco, provavelmente inimputável, mas o Tennessee não vai largar o osso, de qualquer maneira. Há dez anos, atingiu a tiro e matou três agentes infiltrados da brigada antidroga numa rusga que correu mal. Corpos por todo o lado. Cinco pessoas morreram no local. O Tad quase morreu, mas conseguiram salvá-lo para o poderem executar mais tarde.

Mitch riu-se de frustração e respondeu:

— E estás à espera de que eu apareça montado num cavalo branco e salve o tipo? Vá lá, Willie! Dá-me alguma coisa com que possa trabalhar.

— Não há praticamente nada que se possa fazer, a não ser alegar insanidade. O problema é que o mais provável é ele não aceitar falar contigo.

— Nesse caso, para quê darmo-nos a este trabalho?

— Porque temos de tentar, Mitch, e eu penso que és a nossa melhor hipótese.

— Estou a ouvir-te.

— Bem, acho-o muito parecido contigo.

— Uau, obrigado!

— Não, a sério! É branco, da tua idade, e é de Dane County, no Kentucky.

Mitch ficou sem reação por um momento, mas depois lá conseguiu dizer:

— Ótimo! Provavelmente, somos primos.

— Não me parece, mas o pai dele trabalhava nas minas de carvão, tal como o teu. E ambos morreram lá.

— A minha família não é para aqui chamada.

— Desculpa. Tu tiveste sorte e inteligência para sair desse meio, mas o Tad não, e depressa se viu envolvido no mundo da droga, no duplo papel de consumidor e traficante. Ele e mais uns quantos amigos estavam a fazer uma grande entrega perto de Memphis quando foram alvo de uma emboscada por parte da brigada antidroga. Toda a gente morreu, exceto o Tad. Parece que a sua sorte se esgotou, finalmente.

— Não há dúvidas sobre a sua culpa?

— Para o júri, claro que não. O que está em causa não é a culpa, mas sim a insanidade. A ideia é fazer com que seja avaliado por alguns especialistas, os nossos médicos, e apresentar um recurso de última hora. Mas, primeiro, alguém tem de lá ir e conversar com o homem. Neste momento, não aceita visitas.

— E achas que vamos criar uma ligação?

— É uma hipótese remota, mas porque não experimentar?

Mitch respirou fundo e tentou pensar noutra solução. Entretanto, perguntou:

— Quem está com o caso?

— Bem, na realidade, ninguém. O Tad tornou-se um verdadeiro «advogado de cadeia» e apresentou a documentação necessária para prescindir dos serviços da sua equipa. O Amos Patrick, um dos melhores que há por lá, representou-o durante muito tempo. Conhece-lo?

— Estive com ele numa conferência. É uma personagem e tanto.

— A maior parte dos advogados dos condenados à morte são verdadeiras personagens.

— Olha, Willie, não pretendo ficar conhecido como advogado de reclusos no corredor da morte. Já estive nessa situação duas vezes e chegou-me. Estes casos consomem-nos e tornam-se desgastantes. Quantos clientes teus viste morrer?

Willie fechou os olhos e respirou fundo.

— Desculpa — murmurou Mitch.

— Demasiados, Mitch. Digamos simplesmente que já passei por isso. Ouve, falei com o Amos, fartámo-nos de conversar, e ele gostou da ideia. Ele leva-te de carro à prisão, e quem sabe? Talvez o Tad te considere suficientemente interessante para terem uma conversa.

— Parece um beco sem saída.

— Daqui a noventa dias, será certamente um beco sem saída, mas pelo menos teremos tentado.

Mitch levantou-se e foi até uma janela. A vista de Willie era para oeste, sobre o Hudson.

— O Amos está em Memphis, certo?

— Sim.

— Eu não quero voltar a Memphis. Há um historial demasiado grande.

— Isso é passado, Mitch. Foi há quinze anos. Escolheste a firma errada e tiveste de te vir embora.

— Tive de me vir embora?! Caramba, andavam a tentar matar-me! Havia pessoas a morrer, Willie, e a firma inteira foi parar à prisão. Juntamente com os clientes.

— Todos mereceram ser presos, não é verdade?

— Suponho que sim, mas eu é que arquei com as culpas.

— E, por esta altura, já desapareceram, Mitch. Dispersaram.

Mitch voltou a sentar-se e sorriu para o amigo.

— Só por curiosidade, Willie. As pessoas aqui falam sobre mim e sobre o que aconteceu em Memphis?

— Não, isso nunca é mencionado. Conhecemos a história, mas ninguém tem tempo para mexericar sobre isso. Fizeste o que devias, vieste-te embora e recomeçaste a tua vida. És uma das nossas estrelas, Mitch, e isso é a única coisa que importa na Scully.

— Não quero voltar a Memphis.

— Precisas das horas. Tens muito poucas, este ano.

— Hei de compensar o tempo em falta. Porque é que não me arranjas uma fundaçãozinha simpática a precisar de assessoria jurídica pro bono? Talvez uma organização que alimente crianças subnutridas ou entregue água potável no Haiti?

— Ias sentir-te infeliz. Tu preferes ação, drama, a corrida contra o tempo.

— Já passei por isso.

— Por favor. Estou a pedir-te um favor. Não há mesmo mais ninguém. E há sempre a grande probabilidade de bateres com o nariz na porta da prisão.

— Não quero mesmo voltar a Memphis.

— Coragem! Amanhã, há um voo direto à uma e meia, a sair de LaGuardia. O Amos está à tua espera. Quando mais não seja, vais ter o prazer da sua companhia.

Mitch sorriu, derrotado. Ao levantar-se, murmurou:

— Está bem, está bem. — E dirigiu-se para a porta. — Sabes uma coisa? Acho que me lembro de uns Kearnys em Dane County.

— É assim mesmo! Vai visitar o Tad. Tens razão. É capaz de ser um primo afastado.

— Não suficientemente afastado.