No último episódio do "Start Now, Cry Later", o podcast da Startup Portugal sobre o ecossistema de empreendedorismo nacional, os temas dividiram-se entre incubadoras, na primeira parte — numa conversa com Tiago Ratinho, da IESEG Paris — e Inteligência Artificial, na segunda parte. O tema da Inteligência Artificial (IA) chegou graças à DefinedCrowd, empresa em ascensão fundada pela portuguesa Daniela Braga e que liderou uma ronda de investimento de mais de 46 milhões de euros. Esta foi a maior soma alguma vez angariada por uma empresa de IA fundada e liderada por uma mulher nos Estados Unidos, um dado impossível de ignorar.
A presença da IA já não é uma novidade para a Startup Portugal, nem para a população em geral, que lida com esta tecnologia na gestão do quotidiano, por via dos computadores, telemóveis e outros dispositivos, em operações tão simples como, por exemplo, a tradução automática de um texto, o apoio ao cliente automático em chats online, as aplicações de saúde.
É também um dos temas mais prementes da ficção científica, que mediatizou esta tecnologia através de livros e filmes como “Eu, Robô” (inspirado no livro homónimo de Isaac Asimov), “2001: Odisseia no Espaço”, ou mesmo a série “Exterminador Implacável”. Todos estes títulos levantam a mesma questão: quais os limites da IA?
Enquanto a singularidade tarda (momento em que os computadores se tornam totalmente independentes dos humanos), as fronteiras entre espécie humana e as máquinas parecem estar cada vez mais diluídas, e a IA vai acontecendo cada vez mais numa área que vemos como particularmente humana: a das artes.
Um dos mais prementes exemplos surgiu em 2016, quando a Universidade de Delft, nos Países Baixos, se juntou à Microsoft e ao ING para continuar o legado de Rembrandt Van Rijn — sim, o malogrado pintor holandês do século XVII. Através de um processo de aprendizagem detalhado, o The Next Rembrandt — nome que se deu à IA criadora de arte neste projeto — analisou profundamente a técnica de pintura de Rembrandt, desde a forma como o pintor aplicava o pincel sobre a tela até ao tipo de personagens que escolhia ilustrar. A máquina conseguiu criar quadros que respeitam integralmente o trabalho e as técnicas do artista. O resultado são novos quadros pintados por uma máquina moldada por Rembrandt de forma póstuma e, consequentemente, a continuação do seu trabalho quatro séculos depois.
Também na música, que já não é adversa à digitalização, a IA está a tomar um papel preponderante. O caso mais singular será o da artista Holly Herndon, norte-americana radicada em Berlim que desenvolveu a Spawn, o seu "bebé algorítmico" que contribuiu para a criação de “Proto”, álbum que lançou em 2019. Spawn e “Proto” foram o objeto da sua tese de doutoramento pelo Center for Computer Research in Music and Acoustics, da Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA).
Também neste caso, a Spawn passou por um processo complexo de aprendizagem, tendo “ouvido” e processado música de vários colaboradores de Herndon e assimilado vozes de várias pessoas que passaram pelo estúdio da norte-americana. A Spawn, tendo sido "apadrinhada" por cada um destes colaboradores, começou por criar modelos sónicos inspirados em cada um deles, que resultaram em canções do disco. Por ora, Spawn ainda é jovem e não se encontra preparada para dar concertos, mas o seu processo de formação continua, com a artista e os seus colaboradores a recolherem, em concerto, sons e interações com a audiência que servirão para um próximo passo: um concerto dado por uma inteligência artificial.
Em entrevista ao site Arte Tracks, Herndon não se coíbe de sublinhar que esta é a nova realidade — e que qualquer algoritmo minimamente desenvolvido pode já substituir muitos artistas em atividade neste momento, principalmente se as suas criações forem particularmente canónicas (como o serão a música pop, a música erudita e outras expressões muito estilizadas). A artista, contudo, defende que esta é uma oportunidade para a Humanidade olhar em frente e pensar quais os próximos passos de criação, que modos e possibilidades.
De volta às expressões visuais, Refik Anadol criou uma rede neurológica pela qual processa uma quantidade imensa de informação — imagens, sons, vídeos, etc. — para criar aquilo a que chama "esculturas de dados". No seu processo, Anadol cria uma série de algoritmos que não só processam todos os dados, como encontram novas formas de os expor em complexas e imersivas instalações de vídeo. O próprio diz que a informação de base não passa de, muito simplesmente, zeros e uns, mas a sua interpretação está cheia de possibilidades. E as que nos propõe são estimulantes como pouca coisa antes vista.
Se começámos este texto por indagar sobre os limites da Inteligência Artificial, temos de o concluir a dizer que não sabemos, de facto, quais são, mas que parecem ser, de dia para dia, cada vez menos. Por outro lado, a presença desta tecnologia na nossa vida abre novas possibilidades para a espécie humana evoluir e progredir. Estas devem, claro, ser reguladas, pensadas e preparadas — e, felizmente, isso já está a acontecer. Por exemplo, “Eu, Robô”, o livro, não é apenas um documento de ficção, é também um importante exercício de ética, em que são formuladas as primeiras leis para mediar a relação entre a inteligência das máquinas e os seres humanos de forma construtiva.
É, de resto, isso mesmo que os artistas de que falámos estão a conseguir fazer com recurso a estes complexos algoritmos quase independentes.
O podcast “Start Now, Cry Later”, um empreendimento da Startup Portugal apresentado pela jornalista Mariana Barbosa, editora de empreendedorismo no ECO e diretora da revista Pessoas, está disponível em todas as plataformas. O episódio mais recente pode ser ouvido aqui.
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