Telhados de vidro numa era em que todos têm pedras na mão
É duro. Já não estamos no início do ano, mas para muitos este dia terá representado um fim: o das suas férias. No entanto, quis a providência que, para alegrar as conversas de corredor, tenham ocorrido na véspera um importante embate desportivo e a gala dos Globos de Ouro. Foquemo-nos na segunda.
O grande foco estava na Netflix, produtora que, com 17 nomeações, se afirmava como a maior candidata a sair de Los Angeles com uns quantos troféus. Mas não. Findadas as cerimónias, nem o serviço de streaming tinha grandes razões para celebrar, nem esse foi um dos tópicos mais discutidos.
Ao invés, foi no discurso de abertura do humorista Ricky Gervais que incidiu boa parte da discussão. Para lá das piadas — mais ou menos ofensivas, isso fica ao critério de cada um — o momento de “pôr o dedo na ferida” veio quando o inglês deixou como aviso aos presentes que se escusavam de fazer discursos políticos pois isso não seria mais do que um espelho da sua hipocrisia, dada a sua idoneidade moral estar comprometida.
“Bem, vocês dizem que são ‘woke’ [politicamente engajados], mas as empresas com as quais trabalham… Apple, Amazon, Disney... Se o ISIS [EI, Estado Islâmico] começasse um serviço de streaming, vocês ligavam ao vosso agente, não ligavam?”, disparou Gervais.
A isto, o humorista adicionou que os potenciais vencedores não estariam “em posição para dar palestras ao público sobre seja o que for”, devendo limitar-se a “aceitar o seu premiozinho, agradecer ao seu agente e ao seu Deus”. O discurso só não prosseguiu porque o microfone do anfitrião foi cortado, mas a sua natureza vituperante não foi suficiente para demover alguns dos presentes.
A sugestão de Gervais levanta algumas perguntas, mas poucas respostas. Se cada um de nós tem, em bom português, “telhados de vidro”, será isso razão para não nos engajarmos com temas que achamos importantes? Ou há um grau na máxima do “faz o que eu digo, não faças o que eu faço” até onde é possível esticar a corda? Será que caímos no risco do chamado “whataboutism” quando uma pessoa não pode lançar um apelo político porque já trabalhou com uma empresa de práticas dúbias, mesmo que os temas não coincidam?
Por outro lado, por mais hipócritas que sejam os apelos, se feitos numa grande plataforma, não terão pelo menos o condão de promover mudança? Ou, pelo contrário, se provada a imperdoável incoerência, será que isso fará o público virar-se contra o interlocutor, saindo o tiro pela culatra?
Nesta era de radicalização de posições e da maximização do alcance dos discursos, onde uma linha de texto ou um soundbite pode chegar a milhões de pessoas e onde o ativismo pode ser confundido com 140 caracteres irrefletidos, estas são questões que importa continuar a discutir, especialmente porque, mais do que nunca, são de natureza política, como Donald Trump veio a demonstrar.
O novo capítulo das tensões entre Irão e EUA escreveu-se, mais uma vez, na conta oficial de Twitter do presidente norte-americano, quando este garantiu que não precisa de aprovação do Congresso para ataques, servindo a sua rede social de "notificação" para o mesmo efeito.
Já junto às nossas portas, a situação mantém-se igualmente belicista, mas no campo da política interna. É sobre “guerra total” que Francisco Sena Santos escreve quanto ao parlamento em Espanha, podendo o país “ entrar numa fase de crispação política sem precedentes” enquanto Pedro Sanchéz tenta formar governo. A primeira tentativa falhou, por um voto (166 contra 165); amanha segue-se o segundo round.
E já que falamos no dia seguinte, 7 de janeiro não é uma data que possa ser celebrada pelos melhores motivos: não só marcará os três anos da morte de Mário Soares (havendo nova homenagem planeada pela Assembleia da República), como também cinco anos desde que dois homens armados com espingardas Kalashnikov entraram na redação parisiense do semanário humorístico Charlie Hebdo, matando doze pessoas.
Passou-se meia década, mas os tempos mantém-se tensos e as questões quanto à liberdade de expressão mantém-se na ordem do dia. O melhor mesmo para aliviar os nervos será dedicar-se às artes.
Em Lisboa, por exemplo, tem início o espetáculo "Mário - História de um Bailarino no Estado Novo", um monólogo de Fernando Heitor, que conta, em forma de ficção, a vida de Valentim de Barros, bailarino homossexual perseguido pela ditadura, interpretado por Flávio Gil. Em cena até 28 de janeiro, a peça pode ser vista na Sala 2 do Cinema São Jorge.
Já no Porto, no rescaldo do falecimento da atriz Anna Karina, o Teatro Rivoli vai ter uma sessão de homenagem com a projeção da nova cópia restaurada do filme "Pedro, o Louco", de Jean-Luc Godard.
Entre estes, outros bálsamos estarão também disponíveis, a um livro ou um passeio de distância.
Eu sou o António Moura dos Santos e hoje o dia foi assim.
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