Xanana, Ramos Horta, Alkatiri. As personagens que são símbolo principal da resistência, heroica, à ocupação indonésia de Timor conseguiram naquele tempo de luta pela independência (1975/1999) superar, às vezes com muita dificuldade, as tensões entre as diferentes famílias políticas e ideológicas. Agora, a eleição presidencial que está a decorrer, 20 anos depois da definitiva proclamação da independência da República Democrática de Timor-Leste, ilustra como alguns desses protagonistas passaram ao choque frontal.
O Nobel da Paz José Ramos Horta, com 301.481 votos (46,5%) na primeira volta desta eleição é favorito para o confronto eleitoral decisivo, em 19 de abril, em que terá como rival o candidato Francisco Guterres Lu-Olo que, com 143.408 votos (22,1%) não chegou a metade dos votos recebidos por Ramos Horta.
Este resultado tem significado suplementar, porque Lu-Olo é o atual chefe de Estado – que assim recebe um robusto voto de desaprovação – e é ao mesmo tempo o candidato do histórico partido FRETILIN, assim também castigado na primeira volta da eleição.
Em fundo a este combate político estão outras duas personalidades lendárias daquele tempo em que Portugal vivia com emoção, quase minuto a minuto, com diretos non stop nas rádios, a luta dos timorenses pela liberdade: são Xanana Gusmão e Mari Alkatiri.
Xanana (que Mário Soares chegou a classificar como “o nosso Mandela de Timor”) apoia agora Ramos Horta, candidato do CNRT.
Alkatiri apoia Lu-Olo, candidato da FRETILIN.
Há um pormenor: Lu-Olo foi apoiado por Xanana na anterior eleição (2017) que com 295.048 votos (57%) o levou à presidência. Mas as derivas políticas destes últimos cinco anos levaram Xanana a romper, em discordância aberta, com o presidente e a maioria governamental.
Assim ficou relançada a parceria Xanana/Ramos Horta.
Apesar do risco de interpretação simplista parece legítimo concluir que Xanana continua a ser influência determinante entre os timorenses, em especial os das gerações que viveram a luta pela independência.
Um dos eleitores timorenses que votou no passado sábado na assembleia de voto na embaixada em Lisboa não escondeu: “Voto no Ramos Horta para que ele convoque legislativas antecipadas e o Xanana seja primeiro-ministro”.
Os resultados desta primeira volta apontam para alta probabilidade de eleição de Ramos Horta daqui a um mês.
Lu-Olo e a Fretilin ainda podem sonhar com o que aconteceu nas presidenciais portuguesas de 1986. Então, na primeira volta, Diogo Freitas do Amaral reuniu toda a direita e teve 46,3% dos votos, enquanto Mário Soares, candidato do PS, apenas somou 25,4% numa eleição em que a esquerda também tinha Salgado Zenha (20,8%) e Maria de Lurdes Pintasilgo (7,3%); depois, na finalíssima, Soares fez o pleno da esquerda (Álvaro Cunhal recomendou aos comunistas que tapassem os olhos e votassem contra o candidato da direita) e foi eleito com 51,1%. Soares impôs-se a Freitas por 128 mil votos entre seis milhões de eleitores e, com fair play democrático, na manhã seguinte enviou-lhe um ramo de flores com uma mensagem afável. Ficaram amigos para sempre.
No país timorense de agora não parece provável a réplica do quadro português de 86. A Fretilin contará com os quase 49 mil votos do ex-comandante militar Lere, porta-voz dos antigos combatentes e assumidamente apoiante da Fretilin, mas mesmo que houvesse pleno de transferência de voto, não chegaria.
Há uma personagem a ter em conta, Armanda Berta dos Santos, atual vice-primeira-ministra. Em Lisboa apenas teve um voto (houve sorrisos na sala quando, perto do final da contagem, esse único voto foi anunciado); mas esta mulher consegue no total 56.289 votos (8,7%). É uma candidata com ambições e que se dispõe a influenciar o futuro de Timor.
Há quem veja Berta dos Santos como “uma espécie de André Ventura de Timor”. Berta agrega o voto de protesto, sobretudo o de algumas franjas jovens que após 20 anos de promessas com a independência, continuam sem qualquer horizonte de esperança. É gente que nasceu já neste século, que não vê interesse em que o português seja língua oficial, a par do tétum, em Timor, e que na falta de ocupação cultiva as artes marciais muito praticadas em Timor. Berta é menorizada pelas elites que rejeitam o modo populista, mas capta algum voto do povo rural mais abandonado.
A cúpula política em volta de Berta dos Santos deverá preferir Lu-Olo e assim tentar garantir a continuidade do atual governo sem o recurso ao cenário de eleições antecipadas que Ramos Horta representa. Mas é improvável que esses jovens optem por votar na continuidade do presidente Lu-Olo que é presidente no sistema que contestam.
Há um dado a considerar na análise ao voto timorense: a diáspora (Austrália, Coreia do Sul, Inglaterra, Portugal e República da Irlanda) confirmou a preferência por Ramos Horta (39%), com nove pontos percentuais de avanço sobre o atual presidente e candidato da Fretilin, Lu-Olo, mas entre estes mesmos timorenses no exterior Berta dos Santos ficou pelos 4% das preferências. Em Portugal, com dois votos (um em Lisboa e outro no Porto), ficou com apenas 0,6%. Ela é uma ocorrência local de Timor, surge como a porta-voz do descontentamento e do protesto, apesar de vice-primeira-ministra.
No apuramento eleitoral em Portugal uma outra mulher, Milena Pires, ex-embaixadora de Timor na ONU, teve o mérito reconhecido com 18,3% dos votos. Chegou a estar em segundo lugar na contagem geral, acabou em terceiro. Mas em Timor o cosmopolitismo conta pouco e Milena fica em nono lugar nesta eleição com apenas 0,82% do total de votos. Está entre os oito candidatos – metade do total – que não atingiram 1% do total de eleitores.
Este próximo mês de campanha presidencial em Timor promete muita tensão política. Vai ser acima de tudo o duelo entre veteranos da primeira geração, a que vem de 1975, o ano da primeira declaração de independência de Timor, que ficou efémera por naquele novembro ter acontecido logo a seguir a invasão e ocupação indonésia, que se prolongaria por 24 anos, com forte repressão indonésia, simbolizada pelo determinante massacre no cemitério de Santa Cruz e a luta da Resistência reconhecida com o Nobel da Paz em 1996 para Ramos Horta e Ximenes Belo.
Esta eleição de agora é decidida daqui a um mês entre veteranos: José Ramos Horta (apoiado por Xanana) e Francisco Guterres Lu-Olo (apoiado por Alkatiri).
É devido perguntar: onde estão e quem são, entre as novas gerações, os líderes para o futuro de Timor? A próxima presidência, o próximo parlamento (que certamente vai continuar muito fragmentado) e o próximo governo serão determinantes para definir esse futuro. A gerar algo mais de coesão ou com agravamento da tensão social. E para promover o aparecimento de novos líderes.
É reconhecido que entre a população é generalizada a insatisfação com os dirigentes do aparelho político e a inércia do insuportavelmente burocratizado aparelho administrativo do Timor.
É sabido que há a riqueza em recursos naturais, gás e petróleo no mar de Timor. A condução da negociação do acordo que abre o caminho para essa exploração é competência do governo. Há quem veja Xanana como quem melhor conhece as entranhas deste dossiê internacional (Timor-Leste, Austrália, Indonésia) do gás e do petróleo, por isso a pessoa certa para finalizar o acordo. A negociação com a Austrália está resolvida e foi ele, Xanana, quem comandou o interesse de Timor; falta agora outra parte complexa, a definição com a Indonésia da fronteira marítima. Por isso Xanana é recomendado por quem conhece o dossiê para fechar essa negociação.
No cenário mais provável de vitória de José Ramos Horta na eleição presidencial a meio de abril, vão surgir pressões cruzadas para dissolução do parlamento que levem a novo governo. Talvez seja uma última ocasião para regresso de Xanana Gusmão à liderança política em Timor como chefe do governo e fecho de ciclo com a conclusão de um acordo estruturante para o futuro: esse dos recursos naturais no mar de Timor.
Por agora, Xanana é o pai – ou avô – da pátria timorense, reconhecido pelos mais antigos; resta saber se também consegue envolver os mais novos que continuam à procura de bússola que aponte a esperança. Há quem pense que é tempo de encontrar soluções que não impliquem o recurso ao avô.
Timor precisa de superar a imagem de “ilha insustentável” que o então jornalista Pedro Rosa Mendes analisou de modo notável e corajoso em novembro de 2008.
Passaram mais de 13 anos. Esta primeira volta das presidenciais mostra que Timor continua sem alternativa forte à geração que conduziu com valentia a luta pela independência. Falta que apareça visão promissora entre as gerações seguintes à fundadora de 75.
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