Aqui no SAPO24 sinto-me em casa porque posso falar sobre casa. Recentemente, o espaço de opinião neste portal tem sido entregue a pessoas que escrevem acerca das terras onde cresceram - destituindo assim a ideia de que somos um país pequeno resumido a Lisboa e seus despersonalizados arredores. Sem que me fosse lançado tal repto, já aqui várias vezes discorri sobre Tondela, com o orgulho, a saudade e os olhos de tondelense que sempre me acompanham. É um pretexto para denunciar o contra-senso de tratarmos o interior do país como um exterior, de vermos os assuntos de lá exactamente como um “lá”, raramente um “aqui”.

Sobre Tondela, porém, houve uma coisa em particular que não partilhei, nem em crónicas, nem em redes sociais, nem em lado nenhum. A 16 de Setembro, dia da cidade, condecoraram-me com a medalha de mérito da Câmara Municipal. Foi um gesto que me honrou e comoveu duma forma muito genuína, e por isso senti a necessidade temporária de travar vanglórias. Não espalhei a novidade, exactamente por tratar-se dum prémio que aceitei com a mais profunda humildade. Aceitei, mas à distância: nesse 16 de Setembro, dia da cidade onde nasci, estive retido em Lisboa, cidade que me adoptou. Isso não impediu que eu fizesse chegar a Tondela um pequeno discurso de aceitação. No texto que enviei, a forte toada de gratidão apontava para uma explicação: a cidade distinguiu-me por boas características que eu jamais teria se não proviesse de lá. Há Tondela em tudo o que faço e, portanto, naquela condecoração eu só estava a emprestar o meu nome para que Tondela se homenageasse a si própria. É justo que a minha terra reconheça aqueles que sabem que sem Tondela nada seriam. Terminava o discurso agradecendo aos tondelenses por “ainda me carregarem como um de vós”.

Exactamente um mês depois, na madrugada do dia 16 de Outubro, nunca me senti tanto e tão pouco “um de vós”. As chamas tomavam conta de Portugal e pareciam ter predilecção voraz pela minha terra. Uma madrugada de pesadelo, sobretudo para os que não puderam dormir. Tive o coração nas mãos e um teclado debaixo dos dedos, frenético a tentar saber onde parava o fogo, onde chegavam os bombeiros, quem estava a salvo. Mas tinha só isso: preocupação - uma compaixão que muito facilmente se confundiria com mera curiosidade. Não tinha fumo nas narinas, nem pernas cansadas, nem falta de rede. Como é que eu me posso chamar “um de vós” se não peguei em qualquer balde, nem abri a porta de casa para vos acolher? Como é que eu posso continuar a forjar o tondelismo emérito quando nem cheguei a estar livre de perigo, apenas ausente?

Bem sei que este sentimento de culpa não faz sentido, mas deixem-me estar. Perante tanta falta de vergonha institucional, tanto descartar de responsabilidades, os meus remorsos não parecem a coisa mais abjecta do mundo. Os interesses económicos criminosos, os eucaliptos, as florestas por limpar e os pirómanos são, na sua soma, um noivo deixado no altar, porque a culpa morre solteira. Mesmo que decidamos ignorar todas as responsabilidades políticas que se inferem do relatório sobre Pedrógão Grande, e mesmo que decidamos ignorar todas as responsabilidades políticas daquilo que se calculou mal depois de Pedrogão Grande, é impossível negar que acabámos de receber, da parte de quem nos governa, o seguinte: declarações infelizes, declarações muito infelizes, e declarações com tão pouca empatia que só nos podem deixar muitíssimo infelizes. Assim sendo, perante este cenário ridículo de não se pedir desculpa por nada, embarco no cenário menos ridículo, que é pedir desculpa por tudo. Peço desculpa pelo que não fiz, pelo que não sei e, sobretudo, peço desculpa por esta nova falta de patriotismo, que é achar que as coisas estão piores.

Na madrugada de Domingo para Segunda, Tondela ardia. Era a minha terra que ardia – mesmo que os únicos comprovativos de cidadania que tinha à mão fossem uma medalha de mérito e uma cara de profunda preocupação. Às 2h30 da manhã, um jornalista falava para a SIC Notícias a partir de Tondela, mas interromperam-no para que escutássemos António Costa, em directo da sede da Autoridade Nacional da Protecção Civil. Enquanto na minha terra se cerravam fileiras contra o progresso do fogo, eu cerrava os punhos por raiva e incredulidade. Do Primeiro Ministro vi insuficiente consternação. Vi crispação para com as perguntas dos jornalistas que lhe eram incómodas (algo que já conhecíamos de outros episódios ocasionais com António Costa, e que ainda assim fez mais lembrar episódios constantes de José Sócrates). Foram muitas expressões infelizes, o “não me faça rir a esta hora”, as “varinhas mágicas” ou a insinuação de que nós, os que não desdenhamos demissões, somos “infantis”. O que mais me indignou, porém, foi a manha retórica, quando Costa desatou a defender os bombeiros insinuando que alguém estava a culpá-los; ninguém estava. Percebi finalmente quem é que nos vai governar durante os próximos 6 anos. Cerrei os punhos, e nada era infantil nesse gesto.

Em Tondela, terra que não mereço, os Bombeiros Voluntários são inultrapassáveis na importância e estima que recolhem. Por essa instituição passaram, não só algumas das mais ilustres figuras da cidade, como também alguns dos amigos que me são mais caros. Um deles tem uma filha - a Raquel - que é como eu, lisboeta de coração tondelense. Depois do que chorou e viu chorar nestes incêndios, a Raquel saiu-se com esta: “É pena as lágrimas não apagarem fogos, mamã”. Tem só 9 anos, a Raquelinha, mas carrega muitas lições para quem tão mal e parcamente se consterna. Não desdenhe da infantilidade dos portugueses, sr. Primeiro Ministro. Os infantis é que estão certos.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

É a última vez que leio o Ferreira Fernandes depois de eu próprio acabar de escrever. Condensou em poucas e boas palavras o que ainda agora optei arrastar por muitas. Tarde demais.

O verde da desesperança.

Citar o Francisco que me cita.