Grande parte dos estereótipos sobre o Canadá foram compilados pelos habitantes do vizinho norte-americano, normalmente com propósito trocista. Existe um achincalho instituído, uma sobranceria dos E.U.A. que assumem o papel de bully gozão. O objectivo é fazer-nos crer que os canadianos são americanos duma subespécie estrambólica, ou pacóvia, ou indolente; fazer-nos crer que os canadianos, apesar de geograficamente norte-americanos, são na essência sub-americanos.

Ao contrário de quase todos os estereótipos mundiais gerados por preconceito, os estereótipos sobre o Canadá tendem a ser verdadeiros. E o mais curioso, pelo menos a meu ver, é que representam o que de menos zombável há naquele país. Por exemplo: uma das noções gerais que nos apresentam dos canadianos é a de que eles são bonacheirões e bem-educados. Têm óptimas maneiras e um espirito nada conflituoso. Pelos exemplos que conheço, tudo me leva a crer que é mesmo assim. Ora isto talvez seja da idade que já levo, mas poucos prazeres me cativam mais do que assistir à prática de bons modos. Educação, esmero, ponderação, mansidão -  tudo escasso, tudo precioso; talvez seja da idade que já levo, mas não consigo desdenhar desta trufa branca em forma de país.

O Canadá também está habituado a levar pancada por causa das suas exportações musicais. Como as más notícias tendem a perdurar mais que as boas, a imagem do país muito se agrilhoou às Celine Dions e aos Nickelback desta vida. Inevitavelmente isto tem vindo a mudar mas, ainda assim, o saldo é negativo: muito mais maltratámos o Canadá por ter parido um Justin Bieber, do que o elogiámos pelas pérolas que sempre ofereceu ao mundo. Para cada Celine Dion há uma Feist, para cada Nickelback há um Neil Young, para cada canção sofrível do Bryan Adams há uma canção intemporal do Bryan Adams, por aí fora. Até o Bieber já foi mais irritante. Nos últimos 15 anos, o Canadá tornou-se numa nação potencialmente sem rival dentro do indie-rock – só para exemplificar como é inevitável a “desfoleirização” da nossa ideia daquele país.

À boleia da temática musical, vou contar um episódio que condensa os 3 símbolos canadianos da minha preferência, os 3 que irremediavelmente lançaram o país para os ventrículos do meu coração. O primeiro símbolo é o Leonard Cohen, o maior poeta dos músicos e o maior músico dos poetas. A afeição que lhe tenho é imensurável e, por isso, foi com muita alegria que no ano passado acedi ao convite para participar em concertos de homenagem ao bardo. Logo na primeira actuação (em Sintra) não resisti a tomar a palavra entre canções e fazer um elogio ao país de Cohen. Enalteci o Canadá pelo músico, mas também por outra das minhas coisas preferidas de sempre: um tal de ouro líquido chamado maple syrup (ou “xarope de ácer”, para os desavisados que admitem meter a letra X a encabeçar uma palavra que devia ser melíflua nas consoantes)

Esta maravilha da natureza (e o 2º símbolo canadiano que destaco) é extraída das árvores, reduzida no calor, exportada, e depois posta nas minhas panquecas, papas de aveia, bacon, couves de bruxelas, o que for. Tal como não me poupo no uso do maple syrup, também não me poupei nos elogios durante aquele concerto em Sintra. No final da actuação seguinte (no Porto), nos bastidores da Casa da Música esperava-nos uma amável comitiva da Embaixada canadiana em Portugal. Ofereceram a cada músico um livro do Leonard Cohen, mas eu acabei por ter direito a um presente suplementar. E que presente: das mãos do simpatiquíssimo embaixador chegou-me uma grande lata de maple syrup. Vinha acompanhada de um bilhete que agradecia as minhas palavras generosas para com o produto (e para com o país do produto). O mais grato ali era eu, sem sombra de dúvidas.

O 3º símbolo canadiano do meu apreço aparece na forma de alguém que, precisamente, foi nomeado para ser símbolo canadiano em Portugal. Através deste embaixador posso voltar a referir os belíssimos estigmas de toda aquela nação: educação, simpatia e (tal como comprovei) extrema generosidade. É óptimo podermos generalizar positivamente em relação a um país, ainda que ele não esteja livre de muitas maçãs podres. Mesmo assim, há que saudar um povo que conseguiu consolidar os bons modos como uma bandeira nacional. 

Fora do meu radar de amorosidade está, contudo, o primeiro-ministro Justin Trudeau. A minha embirração com o menino bonito do Canadá não tem que ver com a boniteza do menino, embora seja um factor irritante – não por ele, mas pelo culto que se mantém à volta dele. A fotogenia de Trudeau tornou-se a sua intervenção política mais presente. A relevância das acções dele é exacerbada pelo hipnotismo da sua boa aparência. Justin joga com isso, joga a partir da fotografia, a partir do que veste, do que calça; joga ainda com as elogiosas comparações que o contrastam com o balão alaranjado à frente do país vizinho.

Será Trudeau tão bom quanto parece? É aqui que fico de pé atrás. Em 2016, quando aqui escrevi sobre os nossos votos de pesar pela morte de Fidel, tinha também Justin debaixo de olho – fiz cara feia para o menino bonito. O castrismo hereditário deste primeiro-ministro foi a gota do transbordo da minha paciência – um homem que, simultaneamente, abraça pandas e barbas ditatoriais só me merece desconfiança. São ambiguidades perigosas, sobretudo para um “guerreiro da justiça social” com visibilidade e poder. Os “Social Justice Warriors” (SJW) estão para séc. XXI como os puritanos estiveram para o séc. XVII – o mesmo rigor, a mesma devoção, o mesmo fundamentalismo, só que as ambiguidades desta nova estirpe deitam tudo a perder.

É pela faceta SJW que Justin Trudeau me reentrou na mira esta semana. O episódio caricato que protagonizou anteontem devia entrar nos anais dos paradoxos clássicos: em plena sessão de perguntas e respostas numa universidade, Trudeau decidiu interromper o discurso de uma jovem por esta ter usado o termo “mankind”, afirmando ele que preferia o termo “people kind”. Numa tradução à portuguesa, foi como se a jovem tivesse usado o termo “o Homem” referindo-se à “humanidade”, e Justin tivesse objectado pela cedência da menina às falocracias e ao patriarcado da língua.

O paradoxo é notável. Por um lado, Trudeau puxou o catecismo SJW para censurar os machismos latentes nos idiomas. Só que, ao fazê-lo, incorreu num dos mais graves delitos para qualquer SJW: o chamado “mansplaining”. Ali estava um homem (muito) branco e (muito) privilegiado, cisgénero, a interromper uma mulher para homenxplicar-lhe o que ela devia ter dito. O choque destas partículas de correcção política - tão contundentes em velocidade contrária - ainda vai resultar na explosão atómica que nos mata a todos. Andamos preocupados com o Trump e com o Kim Jong-un e ainda é o Justin que vai dar cabo disto tudo.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

O amor pelo Cohen ainda se vai espalhar por duas casas portuguesas.

57 maneiras mágicas de juntar ouro-das-árvores à comida.

O mansplaining do menino bonito.