Já sabemos, há muito, que Jesus é uma espécie de criança com lepra e que os pais dos outros meninos aconselham a que não se brinque com ele com medo que a doença se pegue. Digamos que Jesus Cristo é a criança piolhosa que contagia as outras no recreio e que, por isso, convém não brincarmos com ele. Pelo menos, é sempre essa a imagem que surge na minha cabeça quando alguém diz que não se deve brincar com Cristo.
Do Brasil chega uma polémica: o grupo de comédia Porta dos Fundos, que começou no YouTube em 2012 e que conta com 16 milhões de subscritores no seu canal, lançou, como tem sido hábito nos últimos anos, um especial de Natal no serviço de streaming Netflix. Esse especial parodiava a vida de Jesus, insinuando que ele tinha uma relação homossexual e pouca vontade para espalhar a palavra de Deus, bem como retratava Deus como alguém manipulador e vingativo. Se a primeira parte pode ser ficção, a segunda parece-me ir ao encontro do que vem na Bíblia e, talvez por isso, não tenha sido muito referida por todos os ofendidos.
A Netflix tem os filmes dos Monty Python e nunca houve esta polémica; o Porta dos Fundos já tinha feito um especial de Natal a parodiar a última ceia, mas também não gerou tanto alarido; por isso, parece-me óbvio que desta vez o que fez transbordar o copo dos fanáticos cristãos foi o facto de Jesus Cristo ser apresentado como homossexual. Isso é que não! Insinuar que alguém é gay é uma ofensa, especialmente para os fanáticos religiosos que acham que Deus criou a Eva de uma costela de Adão. Sim, porque estima-se que no Brasil cerca de 40% da população acredite no criacionismo puro, ou seja, que Deus criou a terra há menos de 10 mil anos e que a evolução das espécies é mentira. Há, portanto, cerca de 84 milhões de mentecaptos no Brasil. É muita gente burra junta e ainda fazem eles piadas com os portugueses serem pouco inteligentes. Não é que nos possamos gabar de muita coisa, mas convenhamos que em números absolutos (e relativos) de gente burra, não conseguimos digladiarmo-nos com o nosso irmão mais novo, mas mais crescido. E não, não estou a dizer que os brasileiros são burros, estou apenas a dizer que no Brasil há muita gente burra. São coisas diferentes.
Prova disso é que mais de 1.700.000 já assinaram uma petição online que pretende a proibição do filme e a responsabilização da Porta dos Fundos pelo crime de vilipêndio à fé. Bom, com 84 milhões de pessoas com problemas cognitivos no Brasil, a petição até tem poucas assinaturas. Se calhar porque a maioria não sabe ler e assinar, pode ser por isso.
Ficar ofendido por piadas com Deus é do mais ridículo que há. Reparem: é Deus! Deus tem um ego e uma autoestima lá em cima. Deus não fica ofendido com comentários de comuns mortais. Deus tem bué confiança nas suas capacidades. Deus só fica melindrado com bocas de outros deuses.
Os que ficam ofendidos com paródias a Deus são os mesmos que acreditam que Deus é todo poderoso e responsável por todo o bem do mundo e por todo o mal. E que, curiosamente, são os mesmos que acreditam que efeito borboleta é um terramoto no Japão ser causado por sexo anal gay no Brasil. Olhando para a primeira premissa, a atividade sísmica no Japão, é de concluir que a sua causa deve acontecer muito no Brasil, talvez até dentro de um armário onde muitos dos fanáticos religiosos ofendidos se escondem. Ora bem, se tudo isso é vontade de Deus, então também estas paródias o são. Aliás, sempre que escrevo uma piada com Deus sinto um fresquinho na nuca, deve ser o gajo a rir-se atrás de mim enquanto cusca o meu trabalho. Por isso, estas paródias são como os fósseis de dinossauros: é Deus a testar a fé dos crentes. Tudo é vontade de Deus, inclusive os ateus, por isso temos de compreender e perdoar tudo. É a vantagem de acreditar em histórias da carochinha como se fossem verdadeiras: podemos reescrever e inventar à medida que nos dá jeito.
Por cá também houve reações de pessoas que disseram que iam cancelar a assinatura da Netflix por promover este tipo de conteúdo. Isso é justo, não gostas, não vês, mas não exiges a sua proibição ou censura. É justo, mas é estúpido, porque a pessoa em causa trabalha na RTP, por exemplo, e para ser coerente devia despedir-se já que é uma estação onde sempre passaram filmes dos Monty Python como a Vida de Brian que também parodia a vida de Jesus Cristo. Mas pronto, pedir coerência aos fanáticos religiosos é como pedir a um ateu que acredite que a sua mulher virgem engravidou sem lhe meter os cornos.
“Não tens coragem de fazer piada com o Islão”, oiço muitas vezes, sempre que faço piada com Jesus. Primeiro, não vivo num país maioritariamente muçulmano, começa logo por aí. Nunca nenhum pregador de Alá entrou na minha escola primária a espalhar a palavra do seu profeta, enquanto que isso aconteceu (e acontece) com o catolicismo. Nunca vi ser obrigatória a disciplina de Religião e Moral Muçulmana nas escolas. Nunca vi um Presidente da República Portuguesa (estado laico, relembro) agradecer a Alá e fazer questão de misturar o Islão na política, como acontece com Marcelo e a Bíblia. De qualquer forma, fazer piadas com Jesus Cristo não é um acto de coragem, é um acto de liberdade, mas parece que os fanáticos católicos que tanto criticam os fanáticos muçulmanos, só diferem deles na coragem de matar, já que os desejos e ameaças de morte estão lá todos.
Na maioria das ditaduras o humor é proibido ou, pelo menos, alvo de uma escrutínio e censura por parte de quem está no poder. Sendo que Jesus e Deus são o poder, podemos fazer o salto lógico que são déspotas que gostam de governar em absolutismo. A Netflix promove paródias como a Porta dos Fundos. A Bíblia e as outras coletâneas religiosas promovem massacres e mortes em todo o mundo. Escolhi cancelar a assinatura da segunda. Um Santo Natal a todos.
Para ver: Falta de Chá, Especial de Natal, dia 24 de Dezembro, às 23h, na SIC Radical.
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