“Rain checks” eram cupões que se davam ao público quando, por força das condições climatéricas, o evento desportivo era cancelado. Esse vale garantiria acesso ao mesmo evento na data para o qual fosse adiado. Não só a expressão “rain check” se estendeu a outros desportos e outras áreas de negócio, como se tornou numa expressão idiomática comum do inglês estado-unidense. Os americanos usam o termo “rain check” quando querem, por exemplo, adiar um encontro. Frequentemente também é usado como um eufemismo — simula interesse em remarcar uma data que, na realidade, foi cancelada para sempre.

Talvez desta crónica só se salve a trivialidade informativa do primeiro parágrafo, visto que daqui para a frente tudo se vá resumir à frustração duma ideia cancelada. Cancelada e com chuva à mistura, mas sem cupão que me prometa uma ordem rapidamente reposta.

Eu queria escrever sobre a Feira do Livro de Lisboa (FLL). “Queria? Já não quer?” — desta vez, a pergunta de garçom engraçadinho faria sentido; queria escrever e não sei se ainda quero. A minha vontade de falar sobre a FLL corresponde sempre a uma excitação sazonal. Não há fim de Maio em que não diga para os meus botões “A Feira do Livro de Lisboa é o melhor sítio do mundo” — talvez não seja, mas estamos na altura do ano em que ninguém me consegue convencer do contrário. Por outro lado, olho para o céu e custa-me saber que altura do ano é esta.

Não há sobranceria na minha adulação da FLL. Não há elevação, sequer. Se fosse para me vangloriar, para ostentar-me como bibliófilo, nunca escolheria a FLL como jóia das minhas vaidades. Estamos a falar de uma feira onde os livros rivalizam com as roulottes de comida. Eu sou um saloio perfeitamente pacificado com ambas as ofertas: caço pechinchas, apanho clássicos que já devia ter, e não sinto receio de ensacá-los com as mãos ainda pegajosas da bola de Berlim comprada ali ao lado. Há uma conotação errática e desgrenhada que a palavra “feira” me sugere, e por isso prefiro esta nossa FLL às mui higiénicas Feiras do Livro europeias em pavilhões climatizados, cheias de silêncios e mesuras. Um bibliófilo pacóvio, é o que sou (embora, por vezes, me encha de ares superiores — isto quando caminho ao lado de filas para autógrafos de charlatões, literários e literais).

E porque eu queria escrever sobre o melhor sítio do mundo, fui à FLL no sábado. Estava à pinha. Em minha defesa, julgava que era sexta-feira; só a visão da multidão no Parque Eduardo VII, impensável num “dia de semana”, me actualizou o calendário. Acometido por ataques de misantropia, decidi quedar-me pela zona dos alfarrabistas. Em boa hora tirei os auscultadores dos ouvidos, já que as conversas debruçadas em livros velhos eram tudo menos gastas.

Na primeira banca, um diálogo entre velhos desconhecidos. Um sabia os livros que o outro vendia; o outro sabia os livros que aquele comprava; claramente nenhum deles sabia o nome do interlocutor. Não se viam há um ano, e foi isso que fez a conversa migrar dos livros para a vida pessoal. “A última vez que o vi foi aqui. Está mais magro” — comentou o freguês. “Tive uns problemas de saúde, perdi muito peso. Já estou a recuperar.” — respondeu o vendedor. Foi a brecha necessária para que o cliente desabafasse sobre o falecimento recente da sua mulher, tão recente que era quase desajustado já andar ali numa festa de badanas, farturas e ginja de Óbidos. Expôs a recém-viuvez como se um C.S. Lewis ou uma Joyce Carol Oates tivessem descido sobre ele. O alfarrabista respondia-lhe com silêncios literários, e depois com a sabedoria conclusiva dum narrador. Mais acima andava gente a procurar páginas para uma juventude eterna, entre gurus broncos e receitas à base de bagas goji, mas era aqui, no meio dos velhos, em cima dos velhos livros, que a morte dava lições de vida.

Enquanto esboçava mentalmente a analogia entre um livreiro e um confessor (mais bartender do que padre) desloquei-me até à banca que ficava em frente. Ali, o alfarrabista e o cliente pareciam ainda mais cúmplices, talvez até soubessem o nome um do outro. Talvez. Mas no que toca aos gostos, a intimidade era inequívoca. “Tenho aqui uma coisa para si”— e o tom sorridente com que o disse, a roçar o secretismo lascivo, só me espantou mais porque, afinal, trava-se dum livro infantil. “Que beleza. Isto é a primeira edição?” — questionou o cliente enquanto se surpreendia com o impoluto estado daquele “Silka” da Ilse Losa.

O volume estava envolto num plástico protector, e é muito provável que os meus olhos se tenham arregalado de forma nada discreta. É um livro que me aviva memórias, sobretudo através da ilustração de capa da Manuela Bacelar. O freguês, legitimado pelo andar da conversa e pelo meu olhar intrusivo, acrescentou “Sabe que estas ilustrações ganharam uma Maçã de Ouro em Bratislava?”. Se não houvesse internet nos telemóveis, eu tinha ido para casa a pensar que aquele sabichão era um intrujão, e que “Maçã de Ouro de Bratislava” era o nome de prémio mais obviamente falso alguma vez inventado. Só que às vezes o Google é um mero espelho da nossa ignorância e eu, que prefiro biscoitos húngaros, tive de engolir aquela (afinal famosa) maçã bratislavense. Fiquei contente pela Manuela Bacelar, triste pela minha burrice.

Não estava a ser um dia proveitoso em compras, mas pressenti que o deambular pelas bancas, pelas conversas, me faria ganhar outra coisa: uma crónica sobre o melhor sítio do mundo. Decidi então abandonar o excesso de população daquele sábado e regressar durante a semana para mais recolhas. Aqui acaba a bonança e, mesmo que não seja tempestade, veio a chuva que me encharcou os planos. Veio a promessa de descida de temperaturas até sexta-feira. Veio uma desconfiança mccarthiana (cada pessoa mais morena com quem me deparo faz-me suspeitar, invejoso, de que esteve refastelada de férias noutro hemisfério).

Não voltei à FLL desde aquele fim-de-semana. Tenho ouvido relatos de chuva incómoda e racismo incólume, ambos (mais um do que outro) a contaminar a minha sazonal descrição paradisíaca da Feira. A pluviosidade, ao menos, vai sendo benéfica para terrenos de outra fertilidade, para outras folhas. Já o racismo é sempre um misto de chuva-ácida e chuva molha-tolos: não faz falta em terra nenhuma, não faz falta o “vai lá para a tua terra” nenhum; se é para germinar alguma semente, que seja a da indignação. Mas isto é um tema demasiado grande para ficar como mera nota final. Decididamente, I’ll take a rain check nisto tudo.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS, E O RESTO

Os maus ventos da Feira do Livro de Lisboa


Ainda a memória de um dos grandes


E um mashup de dois dos grandes