Os amores terminados às vezes sintetizam um tipo de sentimento para o qual, na nossa língua, nunca encontrei designação. Duvido até que exista uma palavra germânica (daquelas intermináveis a aglutinar várias vocábulos) que descreva na perfeição a espécie de orgulho melancólico que vem com alguns fins de relação. Não é só melancolia, porque essa imobiliza-nos na dor; aqui há uma qualquer vaidade de se seguir em frente. Também não é só orgulho, porque nem nos esforçamos para esconder a dolência. É, sim, o sentido de dever a sobrepor-se ao dever de sentir; é arar-se o terreno do desamor por questões de honra (os alemães não têm palavra para isto, talvez os japoneses tenham). É andar daqui para fora, morto por dentro. Está patente na cara da Theresa May a afadigar-se para cumprir um destino que não lhe apetecia; está na cara do Parlamento Europeu a dizer aos ingleses que se despachem. Está na cara que fazemos logo antes de arrancarmos um penso de forma rápida.
Já que hoje é dia de se entregarem os papéis de divórcio, e antes que tenhamos de ouvir o discurso bizarro dos recém-divorciados a jurar que continuam amigos (mesmo que nada lhes tenhamos perguntado, e mesmo que sejamos parte da esposa repudiada), concedo-me uma última oportunidade para falar do Brexit, e aproveito-a para do Brexit pouco falar.
Há uma Inglaterra benfazeja que nos ocupa o território mental, e que nem sempre tem que ver com aquela que nos ocupa o território algarvio. É a Inglaterra poderosa e amistosa com que firmámos o Tratado de Windsor, é a Inglaterra duma linhagem de soberanos distintos, é a do Shakespeare e Churchill. É a Inglaterra posh, com uma caricatura favorável de cavalheirismo, nobreza e decoro. É a Inglaterra com chapéu de coco, chá, pontualidade e demais boas maneiras. Mas, se apenas mais uma caricatura nos fosse permitida, provavelmente veríamos a Inglaterra briguenta e hooligan, da má dentição e do rendimento de inserção, dos pubs sujos como habitat natural, da higiene feita em poças de piss (a cerveja indistinta do mijo).
Um exemplo de conciliação entre estas referências inconciliáveis está na capa de ontem do Daily Mail. Em cima, o logótipo com as letras elegantemente desenhadas, numa font a invocar tradição medieval requintada. Logo abaixo, a fotografia e a parangona a lembrarem que mesmo o país que teve um Dickens está pejado de idiotas no jornalismo. Na imagem, a Prime Minister britânica e a First Minister escocesa ladeiam o título mal pontuado “Never mind Brexit, who won Legs-it!”. “Esqueçam o Brexit, quem é que ganhou o Legs-it” – numa referência sexista e palerma às pernas de ambas as ministras, bem visíveis na foto.
Com 120 anos de história, e sendo o segundo jornal britânico mais lido, o Daily Mail terá de ser representativo dum Reino Unido que nos surpreendeu com o pedido de divórcio, e que deselegantemente nos disse “não sou eu, és tu”. Enquanto parte enjeitada da relação, é óbvio que estive muito mais atento aos argumentos tabloidianos que foram usados na campanha pelo Brexit. O meu orgulho ferido encontra agora algum alento naquela capa idiota de jornal. Afinal nem éramos nós, eram mesmo eles; o desmazelo político não foi só uma consequência da vilania de Farage, nem da credulidade dos labregos do pub, nem das outras caricaturas xenófobas e permeáveis a populismos. O desmazelo britânico, sensacionalista e abjecto, é tão ou mais generalizado que o seu witt. A Grã Bretanha pode continuar a ser representada pela cara elegante das elites e tradições, mas ocasionalmente haverá referendos a expor os 9 metros dum intestino delgado que digere tablóides – entranhas que são a maioria da população. Comprova-se a ideia churchilliana :“Democracia é a pior forma de Governo...”
A Escócia pode romper uma integração de mais de 300 anos no Reino Unido mas, relativamente a esse assunto, um jornal lido por 4 milhões de pessoas decidiu noticiar as pernas das dignitárias. Esta representatividade do Daily Mail não me faz perder apreço por tudo o que amo na Great Britain (e são muitas coisas), mas é um belo atenuante em dia de divórcio. É como se, de repente, nos lembrassem que o ex-cônjuge ressonava bem alto.
Do “Never mind Brexit” para o “Never mind the Bollocks”. John Lydon, também conhecido por Johnny Rotten - lendário vocalista dos Sex Pistols (pode não ter sido ele a inventar o punk, mas foi o seu primeiro protótipo funcional) – surgiu como uma das mais recentes vozes de apoio ao Brexit, a Farage e a Trump. Sempre admirei a genuinidade de Lydon nos tempos dos Sex Pistols, até porque servia de contraponto à caricatura punk apalhaçada do seu companheiro de banda Sid Vicious. Rotten era uma afirmação enquanto que Vicious era um canastrão; Rotten o herói com causas e Vicious o heroinómano. Ainda que eu nunca tivesse subscrito as ideias políticas de Johnny, foi especialmente penoso vê-lo tornar-se na caricatura que não havia sido, num figurão irrelevante entregue a polémicas insossas e reality shows foleiros.
Esta defesa do Brexit por parte de Lydon, mesmo que encapotada com uma ladainha antiga favorável à working class, é o último prego no caixão do punk. Em dia de divórcio, ponho-me a pensar: devíamos ter sido nós a colocar as malas da Great Britain à porta. Quem é que quer ficar casado com um Reino Unido agora que, oficialmente, punk is dead?
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
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O punk a morrer à nossa frente e nem uma bolinha no canto do ecrã...
O único comentarista político que interessa.
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