O que espoletou a minha opinião não foi, como se poderia pensar, a guerra na Ucrânia, mas sim um fait-divers que possivelmente ficará esquecido em pouco tempo. Mas, às vezes, a presença de uma formiga diz-nos mais do que o elefante na sala.
Não vou aqui argumentar se o nascimento de uma união do continente foi no dia que ficou no registo civil - 1 de novembro de 1993 - ou se podemos considerar a conceção e a gestação como momentos igualmente importantes. Os pais, segundo o consenso - essa palavra que define tão bem o espírito da UE - foram Winston Churchill, Konrad Adenauer, Robert Schuman, Paul-Henri Spaak, Alcide de Gasperi e Ernest Bevin. A mãe, anónima, terá sido a necessidade, ou, num conceito trans, o bom senso. Não interessa. O que interessa é que os países europeus, que se guerrearam durante séculos, finalmente atinaram, e cooperam agora uns com os outros.
O Conselho da Europa data de 1949 (o mesmo ano da criação da NATO), a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, congeminada por Shuman, é de 1951, o Tratado de Roma foi assinado em 1957 e o Parlamento Europeu reuniu pela primeira vez em 1958 (isto, e muito mais, aqui).
A educação e crescimento da criança foram bastante acidentados, com alguns erros de ensino democrático só mais tarde percebidos - a Hungria e a Polónia - e até com a proposta mirabolante de incluir a Turquia, um país que geograficamente não pertence à Europa, politicamente sempre foi o inimigo, e ideologicamente está nas antípodas.
Último percalço, um dos membros fundadores resolveu que afinal já não queria fazer parte da aventura... Adiante.
Uma questão que sempre atormentou a UE é o seu lugar na arena internacional. Cada vez há mais politólogos a considerar que estamos a caminho da distopia prevista no “1984” de Orwell: o mundo dividido em três potências, Oceânia, Eurásia e Ásia de Leste. Orwell só falhou na abrangência geográfica: as potências serão mais provavelmente a Europa, a Ásia e a América - isto, se a Europa conseguir impor-se, o que ainda está para se ver. (Por acaso, a Eurásia de Orwell corresponde ao Império Euro-asiático de Putin, mas não vale a pena entrar em paranoia por causa disso.)
Ora bem, para atingir o poder que a sua massa crítica permite - 750 milhões de habitantes, 10,5 milhões de km2 - a Europa precisaria, assim por alto, de ser autossuficiente energeticamente, ter uma capacidade militar significativa e tornar-se uma potência digital.
Não é preciso ser um especialista para ver que precisamente nestas três áreas a UE está muito aquém das necessidades e, sobretudo, muito atrás das duas outras concorrentes.
Quanto à autossuficiência energética, a cegueira de depender dos inimigos, reais e potenciais (Rússia e África), passou-lhe com o susto da Guerra da Ucrânia, e está finalmente a organizar-se no bom sentido, sobretudo com o recurso às energias renováveis, abandono dos combustíveis fósseis nos transportes (a seu tempo...) e reversão do preconceito nuclear. Ainda não estamos lá, mas vamos a caminho.
Quanto ao potencial bélico, o susto veio com Trump, que fez os europeus perceber que não podem contar com os Estados Unidos ilimitadamente, como têm feito desde 1945. E se Trump ganhar outra vez? Já começaram a produzir o seu próprio armamento, por sinal muito bom, e em tempo voltará um serviço militar talvez no modelo suíço (formação básica de 21 semanas e, depois, seis treinos de três semanas durante nove anos), fora os contingentes profissionais de forças especiais.
Resta a questão do digital. (Estamos a chegar ao tal fait-divers. É só mais um bocadinho.)
Como é do conhecimento geral, a produção europeia de hardware é ridícula, de micro-chips a computadores. Não é do conhecimento geral, que as melhores máquinas-ferramentas para a produção de chips são holandesas, contudo, isso não chega. Os alemães estão a negociar com a Intel a construção de uma fábrica, mas também é pouco, se compararmos com a brutal produção da pequena Taiwan (com as impressoras digitais holandesas, ainda por cima).
Na área do software, é a mesma miséria. As melhores empresas são norte-americanas, não só por antiguidade (estamos a falar de Microsoft, Oracle, Google, etc.) como pelo facto de os Estados Unidos serem muito mais “compreensivos” quanto a questões de privacidade de dados dos utilizadores, consolidação acionista e fusões.
Não estou a dizer que eles é que estão certos; estou apenas a relatar que a preocupação europeia com estas matérias, posta em prática através de um departamento específico da Comissão Europeia para a Concorrência, tem uma atitude muito mais intolerante. Esta entidade, dirigida pela temível vice-presidente executiva Margrethe Vestager, tem funções alargadas não só de desenvolver o digital europeu, mas também de pôr rédeas à competição interna e externa - leia-se, norte-americana. E é ferozmente europeísta.
Tão ferozmente que chegamos à situação que originou esta conversa toda.
A Comissão precisa de um novo Economista-chefe e no dia 11 deste mês Vestager propôs a norte-americana Fiona Scott Morton para o posto. A doutora Scott Morton tem um currículo impressionante: formada em Yale, foi assessora de Barack Obama e é considerada uma das grandes especialistas mundiais na defesa dos direitos dos consumidores e questões anti-trust. Sendo os norte-americanos muito mais batidos nestas questões, porque não empregar um deles, precisamente porque conhece todos os truques do ramo? Porque não? Porque é americana, precisamente.
Os franceses levantaram logo uma gritaria. O próprio Macron, em pessoa, questionou se a Comissão não iria perder a sua autonomia. ministros e parlamentares franceses juntaram-se ao coro. (É preciso não esquecer que o adjetivo “chauvinismo” vem de um francês, Nicolas Chauvin...) Mas mesmo cinco dos comissários de Vestager levantaram o sobrolho.
Esta simples disputa, que terminou com Scott Morton a dizer que não, muito obrigada, é o corolário de uma disputa entre os liberais europeus - aqueles que acham que, sendo a competição internacional, os seus agentes também devem ser - e os estatizantes franceses, que argumentam que a Europa tem de ser autossuficiente em tudo, inclusive em cabeças - sobretudo se forem cabeças como a do francês Thierry Breton, comissário da política industrial, que ainda há pouco tempo teve um desaguisado com Vestager a propósito de se criar uma política industrial unificada na UE.
Aliás, há dois comissários europeus liberais/internacionalistas que estão prestes a sair. A própria Vestager, que é candidata a diretora do Banco Europeu de Investimento, e Frans Timmermans, o comissário holandês a cargo do Programa Verde, que está a pensar em voltar à política do seu país. Cargos abertos para mais influência francesa, de facto.
Pode concluir-se muita coisa destes andamentos. Por um lado, a Europa parece mais do que nunca a caminho duma autossuficiência mas, por outro lado, a questões nacionais continuam a dividir a unidade europeia.
Os perigos que a UE, agora adulta, tem de enfrentar, são os perigos que qualquer adulto conhece quando deixa para trás os sobressaltos da adolescência borbulhenta e da juventude aventureira. Agora, ter de enfrentar a maturidade não quer dizer saber lidar com ela. A chave do sucesso está na abertura ao mundo ou no fechar da concha?
Enquanto se discutem estas orientações básicas, perde-se tempo. A maioridade nem sempre quer dizer maturidade, como todos sabemos.
Comentários