Passo a explicar. Ando a opinar por aqui há mais de ano e meio e, neste período particular, não poucas vezes tive de falar sobre José Sócrates. Acabei de usar a palavra “tive” pois, com toda a honestidade, nada disto é facultativo; o ex-Primeiro Ministro vem sendo o “elefante na sala” e comentá-lo tornou-se forçoso, escapar-lhe é impossível. Contudo, a necessidade de escrever sobre o tema não foi tanto um cumprimento de dever, nem uma questão de consciência. Acontece que o “elefante na sala” é gigante como um mamute, é obeso, brame raivoso, e a sala de que falo é minúscula e fica no trigésimo andar dum prédio sem elevador – impossível ignorar, obrigatório questionar. Não se escapa a este assunto, não é possível, e o que me força nem sequer é a obrigatoriedade moral, só a sanidade mental.
Das muitas vezes em que os meus textos abordaram a questão socratina (guardo o adjectivo “socrático” para o filósofo grego, e “socratista” para o craque brasileiro de 82) acabei por repetir uma questão que, em meu entender, resume a ansiedade que o tema da Operação Marquês traz. Na mesma medida em que não tenho autoridade legal para fazer qualquer deliberação sobre o caso, também não tenho qualquer transtorno mental para evitar os juízos morais sobre o caso. Daí ter repetido esta questão em forma de dilema filosófico: “Como presumir a inocência de alguém quando isso dá a presumir a nossa própria estupidez?”.
Tal pergunta não passava dum desabafo genuíno, e os motivos eram os da claustrofobia – muitos continuavam a enfiar pazadas de ração na boca do “elefante na sala”, e eu ia ficando sem espaço, empurrado contra a parede pelo dorso crescente do mastodonte; era preciso dizer alguma coisa. Mas apesar do meu dilema ser mais sincero que provocador, pelos vistos também era uma formulação proscrita, um atentado ao funcionamento da Justiça ou uma vil ingerência às instituições democráticas. Recebi comentários azedos, mensagens odiosas, emails indignados. Fui acusado de ter várias motivações dolosas para estar a contrariar a intocável presunção de inocência. No fim disso tudo, só um rescaldo possível: os meus desabafos são fora-da-lei, eu sou um provocador rasteiro, logo não deve haver maior punk do que este que vos escreve.
Na última semana tudo desmoronou. Atacar o grisalho é o novo preto. Sugerir a presunção de culpabilidade do ex-Primeiro Ministro socialista deixou de ser uma bandeira dos rebeldes; banalizou-se. Oficializou-se, até. Vieram antigos delfins com piercings, velhos cães-de-fila com pastas ministeriais forasteiras ou ex-namoradas com colunas de opinião, todos a enjeitar o passado, alguns a revisionarem-se. A assumpção de certa vergonha deixou cair a presunção de toda a inocência. O símbolo do PS devia passar de punho fechado a punho aberto, tal foi a maneira concertada com que largaram o engenheiro da mão. E para quem até agora assobiou para o lado sempre com o mesmo argumento (“À política o que é da política, à Justiça o que é da Justiça”), manteve-se a frase e mudou-se o método: um chuto no traseiro de Sócrates serve para empurrar para longe também a nuvem judicial/judiciária que ensombra a imagem dos socialistas; política e Justiça separadas à força de pontapé. Eu era punk rock, mas ao pé disto tornei-me num menino.
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Não queria voltar a destacar o Donald Glover/Childish Gambino, mas ele está a fazer-me a vida negra. Este é, na minha imponderada opinião, o melhor teledisco desde o “Single Ladies” (que faz 10 anos em 2018). Curiosamente, acho que há mais enredo e referências no vídeo da Beyoncé do que aqueles que lhe damos crédito e, por outro lado, acho que há uma obsessão a encontrar mais enredo e referências no vídeo do Childish Gambino do que aqueles que intencionalmente lá estão. A internet está em alvoroço, mas ao menos é pela obra-prima certa.
Ainda o Glover, nada mais que o Glover. “Atlanta” é uma série sem rival neste momento. É o melhor drama, é a melhor comédia. É televisão audaz sem perder uma conexão clássica com o espectador. Os momentos brilhantes são muitos, e estão diversificados: encontram-se na escrita, na realização, na interpretação. Em Portugal pode ser vista na Fox Comedy.
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