1. Esta quarta-feira, quando um rapaz de 19 anos pegou na sua arma e matou toda a gente que conseguiu numa escola, eu estava no mesmo país que ele, o país mais legalmente armado e mortal do mundo. A minha manhã acabara nas canoas da Papua Nova Guiné e a tarde começava nos leões da Assíria, o que é possível percorrendo menos de uma milha desse país. O mesmo país que enche o Metropolitan Museum of Art com americanos de todas as cores, e pares de namorados de todas as cores com rosas vermelhas, porque esta quarta-feira, que foi de cinzas, calhou ser dia de São Valentim.
Segundo o Google Maps, 1287 milhas separam Parkland (onde aconteceu o tiroteio) de Nova Iorque (onde está o museu). À hora a que o atirador fez soar o alarme para que toda a gente saísse das aulas, potenciando a matança, o bruá dos almoços no Met já acalmara. Além das rosas, vi várias pessoas, sobretudo mulheres, com a cruz desenhada a cinza na testa. Havia turistas de todo o mundo, como sempre, mas uma multidão muito local também.
O Met, claro, é um daqueles museus a que se pode voltar infinitas vezes. Além do que alberga há muito, e além das exposições temporárias, estão sempre a ser feitas aquisições de peças. De resto, para os locais, ou mais ou menos, ir lá pode ser um programa que inclui, por exemplo, namorar aos pés do Templo de Dendur (dado pelo Egipto aos EUA nos anos 1960), com o Central Parque a entrar pelo janelão. Pagar por bilhete tem sido opcional, e estes são os últimos dias desse espírito, porque a partir de 1 de Março as regras mudam.
A tarde seguiu sem que a notícia do tiroteio parecesse perturbar a superfície. O museu fechou, a noite caiu bem mais temperada do que na véspera, filas nos delis de Manhattan para as últimas compras, últimas rosas, últimos biscoitos em forma de coração, jogging, ciclistas, patinadores aproveitando o último gelo, metros cheios, restaurantes cheios, comboios cheios para Brooklyn, Long Island. Mas a intensidade do que tem acontecido nos Estados Unidos da América neste último ano trabalha por dentro, mesmo quando não há sinais visíveis disso, por exemplo manifestações. Basta começar a conversa.
2. Na véspera, eu tinha estado com uma amiga americana, moradora na parte mais longínqua de Brooklyn, e ao fim de meia hora de conversa ela disse que passou o último ano a pensar como partir. Trump, sim, o choque daquela eleição, a depressão, mas sobretudo o medo: o medo de um país em que a qualquer momento pode aparecer alguém com uma arma e varrer tudo.
A essa hora, o massacre de Parkland ainda só existia na cabeça do atirador. Mas quase todos os dias há um tiroteio assim nos Estados Unidos da América. Estamos a meio de Fevereiro e o tiroteio da Florida foi o 18º do ano, do Kentucky a Seattle, do Texas a New Orleans. Há 300 milhões de armas neste país, uma por cada habitante, mais ou menos. E a cada 15 minutos a violência armada mata uma pessoa.
A minha amiga não falou destes números, só do medo. De como ser cidadã de um país que se orgulha de ser o maior do mundo se tornou uma ansiedade constante. Claro que o problema das armas não é de agora, mas está mais autorizado do que nunca, e mais encorajado do que nunca por um presidente sempre pronto a relativizar a questão, aliás, a desviá-la. A tragédia das armas é anterior a Trump, mas Trump está do lado de quem quer a América em primeiro lugar quanto a posse de armas. Essa América em que o governador do Texas pode twittar que se sente “embaraçado” por a Califórnia ter passado à frente do Texas quanto a posse de armas, e portanto incentivar os texanos a conquistar o primeiro posto.
A minha amiga passou o ano a querer sair dos Estados Unidos, e só não o fez porque o trabalho não-fixo que tinha se transformou numa oferta de emprego estável. É branca, descendente de europeus, embora dos mais pobres. Mas para quem tem a pele mais escura, e não nasceu aqui, para quem é mexicano, salvadorenho, muçulmano, o medo tem outras formas. Trump é o presidente do muro, e da deportação.
Como os portadores de armas, os supremacistas brancos também se têm sentido encorajados por esta presidência. Acontece as duas coisas estarem ligadas. Aliás, supremacistas brancos vieram reclamar o jovem atirador da Florida como um dos seus.
3. Não estive no sul dos EUA, nesta viagem. Mas em Columbus, Ohio, onde passei uns dias antes de Nova Iorque, conheci uma brasileira que esteve colocada em Phoenix, Arizona, e estava aliviadíssima por ter mudado para o Ohio. Os cactos do Arizona são lindos na Primavera, mas o Arizona é aquele lugar onde um dos entretenimentos é ir para a fronteira atirar ao mexicano, contava ela. Diante disso, a neve, as temperaturas negativas são uma bênção até para uma brasileira.
E, no ambiente em que estive, universitário, o Ohio é o lugar onde nasceu a campanha “No Hate Space”. As portas de muitos gabinetes estão cheias destes cartazes, um movimento de apoio a várias partes da população, mais vulneráveis desde a eleição de Trump, consideradas “comunidades em risco”: “mulheres, LGBTQ, pessoas de pele escura, imigrantes, cidadãos de outros países, minorias religiosas, deficientes.”
A eleição de Trump trouxe à tona racistas e agressores que até aí estavam calados. O ambiente tornou-se muito mais tenso, mesmo dentro da Ohio State University, a segunda maior do país. A auto-censura começou a emergir.
Nos bairros suburbanos de Columbus, cheios de casas de madeira de dois pisos, cada um com o seu jardim, podem ver-se algumas placas enterradas na neve com uma declaração de princípios: “Nesta casa acreditamos que: As vidas negras importam; Os direitos das mulheres são direitos humanos; Nenhum humano é ilegal; A ciência é real; Amor é amor; Não importa qual a sua fé ou a sua capacidade; A bondade é tudo.”
Quem ali mora passou a sentir necessidade de dizer isto, porque isto está ameaçado. E isto tornou-se também uma espécie de laço, de reconhecimento entre quem acredita no mesmo.
4. O atirador da Florida tinha 19 anos e uma arma legal. Durante esta estadia estive em actividades académicas seguidas de jantar onde não se podia servir álcool porque era possível estar lá alguém com menos de 21 anos. Ninguém com menos de 21 anos pode comprar uma cerveja nos Estados Unidos da América, mas facilmente, e cada vez mais facilmente, tem uma arma.
Assim, entre as nações ricas, os EUA tornaram-se o país mais perigoso para uma criança que nasce. Em todas as escolas, já é prática como responder a um tiroteio. Códigos de cores: amarelo: silenciar os telemóveis, voltar à sala de aula, seguir as instruções dos professores; código vermelho: achar uma área segura, trancar a porta, fechar as janelas, apagar as luzes, ficar imóvel. Impressiona ler a troca de mensagens com os pais de alguns dos estudantes apanhados pelo tiroteio: lembra-te, ajuda os feridos, ou faz-te de morto.
Este país, o mesmo onde, em menos de uma milha, é possível viajar milhares de anos pela mais fabulosa criação humana — incluindo arte islâmica, meso-americana, ou de muitos outros lugares de que o trumpismo não sabe nada —, tem aprendido a lidar com tiroteios em massa nas escolas porque simplesmente eles acontecem cada vez mais. E isso é parte da deriva em que Trump se tornou presidente.
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