Como transpareço um óbvio sentimento de culpa, faço questão de atenuar o meu delito consumista com um par de explicações. Primeiro, vou assumir que não me oponho às trocas de prendas por altura de Natal. É verdade que estes costumes pouco têm que ver com o sentido da quadra, mas também não precisam de lhe ser adversos. A minha costela judaica ensina-me que os rituais, mesmo os incompreendidos, podem servir para nos lembrarmos do verdadeiro significado das coisas, não só para atenuá-lo até ao limiar do esquecimento.
O problema também não está no facto das crianças se terem tornado pequenas ditadoras dos nossos costumes. O problema é antes a alarvidade com que os pais cedem à depressão mercatória da época. Eu recebia brinquedos em miúdo, mas nem um grama de alarvidade existia na maneira como os meus pais me presenteavam - isto faz com que recorde todos os Natais da infância, todas as celebrações, todos os momentos em família, e poucos dos muitos presentes que recebi.
Falando em alarvidade, lá estava eu ontem como um porco orwelliano numa vara numerosa, e em filas intermináveis para pagar brinquedos. Na Toys ‘R’ Us fiquei ensanduichado entre uma adolescente - pouco zelosa da intimidade das fotos no telemóvel – e um velhote. Sei que “velhote” é termo algo depreciativo, mas o senhor idoso atrás de mim merece a depreciação. Tossiu, sem pôr a mão à frente, uma vintena de vezes. Felizmente a média de alturas dos velhotes não é elevada, e aquele espasmo catarroso atingiu-me sempre nas costas encasacadas; nunca senti o sopro indesejado nas traseiras desprotegidas do meu pescoço. Pobre velho; se calhar não pôs as mãos à frente porque as tinha ocupadas com sacos cheios de peluches da Patrulha Pata.
Comprar presentes para os sobrinhos (os reais e os emprestados) foi então a razão principal da minha excursão babélica/babilónica. Mas há outro motivo nobre que ficou por dizer, e prende-se com esta crónica. Nas últimas duas semanas fiz aqui recomendações para prendas (primeiro de filmes e depois de um livro) a partir de pechinchas que encontrei em lojas. Tinha guardado para hoje a sugestão musical, e estava à espera que as promoções no centro comercial me inspirassem.
O estranho na recomendação que vou fazer é que ela, não só transcende a noção económica de pechincha como, ainda por cima, foi encontrada num sítio que não era suposto vender discos. Enquanto eu estava na fila de pagamento numa loja de artigos para o lar (não se preocupem, não era uma prenda para um sobrinho, não sou um tio cruel) reparei que junto à caixa havia CDs musicais à venda. O primeiro lá exposto (e bastou-me ver esse) tinha por título “Christmas Jazz”. Se fui enfático com as sugestões das semanas passadas, o meu entusiasmo para hoje é ainda maior. A recomendação não podia chegar mais empolgada, mas é uma recomendação de não-compra. Recomendo vivamente que gastem o vosso dinheiro noutras coisas.
Nada contra o jazz, nada contra a música desta época, nada contra a junção de ambos. Aliás, grandes crooners e jazz singers eternizaram alguns dos clássicos natalícios que todos sabemos, e fizeram-no com qualidade. Mas, admitamos, um CD de “Christmas Jazz” vendido a 2 metros de atoalhados só pode fazer prever aquele jazz aguado, easy listening, típico de lobbies de hotéis que querem um compromisso entre ter música e não a ter. Um compromisso aguado de ter e não ter música, é este o resumo da minha previsão para aquele disco. Talvez cheirasse a alfazema, como tudo ali - continuo a recomendar que não se compre.
É curioso pensar como o jazz nasceu enquanto uma invenção rebelde dos desfavorecidos, depois tornou-se em música de elites e, entretanto, também consegue ser sinónimo de açúcar com notas a mais. Há para todos: puristas, eruditos e comuns. Era a música dos tiranizados, fez-se a música dos tirânicos presumidos e é agora também a música dos democratas sem gosto. O jazz tem, por exemplo, um fulgurante lugar ao vivo no Titanic sur Mer (Cais do Sodré) às segundas-feiras, e uma angustiante caixa de cd numa loja de artigos para o lar.
Lembro-me de uma definição bastante cruel de jazz no “The Commitments”, filme sobre uma banda de soul irlandesa. Certa personagem dizia que o jazz é abstracto e intelectual, feito para gente complicada. Apelidava-o de onanismo musical. Não só me parecem palavras injustas, como tenho mesmo a certeza que o são. Uma das bandas portuguesas de pop-rock de que mais se vai ouvir falar em 2018 (leram aqui primeiro) é formada sobretudo por gente que veio do jazz, e paralelamente lá permanece. Não lhes falta alma, e são pessoas cujo virtuosismo (ao invés de qualquer mantra abstracto) ruma a uma simplicidade que satisfaz. Na noite de hoje (do dia em que este texto está a ser publicado) a banda de que falo entra em palco no Musicbox em Lisboa. São os Cassete Pirata. Não dá para embrulhar, mas não digam que vos deixo sem uma recomendação musical concreta.
Um santo Natal para todos, laicistas escandalizados e tudo.
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