1. Há pessoas que nos fazem fazer coisas. E há pessoas que nos dissuadem de fazer coisas. As primeiras acreditam que somos capazes do que nunca fizemos. As segundas limitam-nos ao que acham que é o nosso lugar. Umas põem-nos em movimento, outras confinam. Sempre tive horror à ideia de que há um lugar para cada pessoa, e sobretudo de que alguém nos pode dizer qual é o nosso. É uma alergia desde que me lembro. Portanto, muito antes de saber que isto também era político.
2. 2018 foi um ano terrível por muitas razões, em muitos lugares, começando pelas pessoas que perdemos. Parte do mais terrível tem a ver com isso: gente a ser enclausurada, seja em casa ou numa tarefa, num papel ou num destino, do lado de lá de um muro ou do outro lado da fronteira. Mas entre quem perdemos estão pessoas que recusaram ficar circunscritas a um lugar, e fizeram tudo para que outros fossem mais livres.
3. Entre essas pessoas, a mais conhecida em que estou a pensar será a brasileira Marielle Franco. Há umas semanas, uma amiga mandou-me uma imagem de uma suposta capa da “Time” em que Marielle era a pessoa do ano. Tinha cara de fake news. Mas, ao contrário da esmagadora maioria das fakes news, haveria muitas razões para ser verdade.
2018 foi o ano de Marielle Franco, pelas piores e melhores razões.
As piores são as que a mataram a tiros, em pleno centro do Rio de Janeiro, no dia 14 de Março; até hoje fazem com que não saibamos quem foi; e contribuem para que no próximo dia 1 de Janeiro tome posse o governo mais assustador desde o fim da ditadura no Brasil.
As melhores são as que levaram várias mulheres negras e faveladas como Marielle, em alguns casos LGBT como ela, a entrar na política como candidatas, e com tal garra que todas as mais próximas dela foram eleitas. Saíram espectacularmente dos vários lugares a que as quiseram confinar a história, o patriarcado, as desvantagens à partida, a discriminação, a dissuasão constante. Fiz reportagem ao longo de trinta anos, não tenho planos para mais, mas ainda bem que estas mulheres são as protagonistas da última que publiquei.
A herança de Marielle está no futuro do Brasil. Toda a lógica de Bolsonaro é a de pôr as pessoas no lugar. Gay no lugar, mulher no lugar, índio no lugar, petralha no lugar, lulista no lugar, comunista no lugar. Bolsonaro veio do passado para engolir o futuro, mas terá no máximo quatro anos. O futuro vai engoli-lo. Somos nós: não há outros.
4. Perdemos essa eleição e muito mais. A Palestina continuou a perder para Israel. A Síria continuou a perder para todos. A esquerda perdeu muitas vezes para si própria. Como aconteceu por exemplo depois do #elenão, porque é preciso sempre algum bode expiatório. Mas Bolsonaro não ganhou porque as mulheres saíram à rua, e com elas muitos. Bolsonaro ganhou apesar de as mulheres terem saído à rua. Apesar de muita gente ter saído do seu lugar. Se a esquerda errou em muitos momentos, o #elenão não foi um deles. Como não estar nas ruas contra o que já estava acontecer? Imaginem chegar 1 de Janeiro e nada ter sido feito.
E vamos entrar no ano novo com milhões de brasileiras a sairem do lugar em que as põem. Vejo-as em redes na Internet, essa enxurrada de tudo e o seu contrário, questionando por exemplo aquele célebre lugar “pões-te a jeito”, que tanto vale para a violação em grupo como para quem protesta na rua. Ou escreve.
5. Tem sido muita perda. E a cada perda alguém vai dizer que a gente não devia ter saído do lugar, ou que o melhor é não sair mais do lugar. Fui ouvindo mais ou menos isto desde que me lembro, comigo e com tanta gente, e nunca tive feitio para pensar senão o contrário. Fixar-me naquele pequeno punhado de criaturas, uma aqui, outra ali, de carne e osso, de tempos idos ou da imaginação, que nos fazem pensar exactamente o contrário.
Quem nos dá força vê-nos num lugar onde ainda não chegámos. Tal como a asfixia vem de quem nos vê onde já não estamos.
6. Tenho um amigo brasileiro que está a passar um ano em Lisboa. Ele ouve, e chora, o fado com a liberdade de quem é brasileiro, portanto está inoculado de nascença. Talvez só um português para rejeitar o fado. Como só um brasileiro para passar de português.
Seja como for, ouçam Elza Soares, a formidável, a caminho dos oitenta-e-dois anos, sempre fora do lugar, fugida do seu texto. E feliz ano novo, porque estamos em guerra:
“A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio
A mulher de dentro de mim cansou de pretexto
A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto
E vai sair
De dentro de cada um
A mulher vai sair
E vai sair
De dentro de quem for
A mulher é você
De dentro da cara a tapa de quem já levou porrada na vida
De dentro da mala do cara que te esquartejou, te encheu de ferida
Daquela menina acuada que tanto sofreu e morreu sem guarida
Daquele menino magoado que não alcançou a porta da saída
E vai sair
De dentro de cada um
A mulher vai sair
E vai sair
De dentro de quem for
A mulher é você
A mulher de dentro de cada um não quer mais incenso
A mulher de dentro de mim já cansou desse tempo
A mulher de dentro da jaula prendeu seu carrasco
E vai sair
De dentro de cada um
A mulher vai sair
E vai sair
De dentro de quem for
A mulher é você
De dentro do carro do moço que te maltratou e pensou que era fácil
De dentro da ala das loucas vendendo saúde a troco de nada
Daquela mocinha suada que vendeu o corpo pra ter outra chance
Daquele mocinho matado jogado num canto por ser diferente
E vai sair
De dentro de cada um
A mulher vai sair
E vai sair
De dentro de quem for
A mulher é você
Sou eu
A mulher
Sou eu
Sou eu
A mulher
Sou eu”
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