Até agora neste século, todas as propostas que visaram enquadrar a utilização de armas de fogo nos EUA foram “chumbadas” pelos republicanos.
Para que alguma iniciativa legislativa nesse sentido seja validada, é requerida a aprovação pela maioria qualificada de 60 dos 100 senadores.
O facto de 10 senadores republicanos anunciarem agora o princípio de acordo com os democratas para legislarem sobre “medidas de segurança” significa que há a necessária maioria para, num ano político de muita polarização com as eleições, ser aprovada legislação que contraria a liberdade total reclamada pelo poderoso lóbi das armas nos EUA.
Estamos a entrar na 24ª das 52 semanas deste 2022. Nas anteriores 23 semanas a polícia já registou 246 tiroteios que causaram cada um mais de três mortes nos EUA. Estes números significam a média de 11 tiroteios com alvo coletivo por semana.
A série do último mês causou tanta consternação e revolta que disparou alarmes públicos e tornou impossível que nada mudasse.
Em 14 de maio passado, um ataque com motivação racista num supermercado em Buffalo, no estado de Nova Iorque, causou a morte de 10 pessoas.
Passados 10 dias, um rapaz com 18 anos a quem no dia de aniversário foi permitido reforçar o armamento que tinha com a compra de uma arma automática, entrou como matador na escola básica de Uvalde, no Texas. Matou 19 estudantes, quase todos crianças com 10 anos, e também dois professores.
Apesar do choque por esta atroz matança, os tiroteios coletivos nos EUA aumentaram nas semanas seguintes.
Só no primeiro fim de semana deste mês de junho, 36 pessoas foram mortas em oito ataques nos EUA. Entre os alvos, frequentadores de uma discoteca em Chattanooga, no Tennessee, e os participantes numa cerimónia de graduação académica em Summerton, na Carolina do Sul. Também houve disparos sobre um grupo que saía de uma festa em Filadélfia, no estado da Pensilvânia.
A onda de indignação desencadeada sobretudo com os ataques em Uvalde e Buffalo, levou a que desta vez entre os sempre inflexíveis eleitos republicanos houvesse o reconhecimento de que há um mal que tem de ser enfrentado.
Tudo começou de modo secreto, por terem a perceção de que o sigilo é condição para que uma negociação sobre armas possa progredir. O senado dos EUA está com representação igualada, 50 senadores democratas e 50 republicanos.
Foi constituída, por proposta do democrata Chris Murphy (o democrata do Conneticut que pronunciou um comovente e envolvente discurso no dia da matança de 19 crianças em Uvalde) e do republicano do Texas John Cornyn, uma comissão de negociação com 10 senadores de cada bancada. Reuniram-se à porta fechada ao longo das últimas duas semanas. Sabe-se que algumas sessões se prolongaram por mais de 10 horas.
Agora, anunciam o tal milagre, pela primeira vez um princípio de acordo para fazer aprovar uma lei de enquadramento da posse de armas nos EUA.
O que está acordado ainda não incide diretamente sobre as armas. Não introduz alguma proibição sobre algum tipo de armas. O foco está na saúde mental e nas tendências violentas dos candidatos a compradores de arma com menos de 21 anos.
Mas o acordo prevê uma medida que até excede as expectativas iniciais dos negociadores democratas: fica definido que um familiar ou a polícia podem ativar a ordem judicial para que uma pessoa reconhecida como perigosa tenha as armas confiscadas e seja impedida de acesso a armas.
O acordo inclui importantes investimentos na avaliação da saúde mental e verificação de antecedentes de jovens que pretendem comprar armamento (neste momento não há restrições).
Um outro progresso: fica banida a existência de armas na casa onde habite algum condenado por violência doméstica. Em paralelo, avança a medida que era a proposta inicial dos republicanos: forte investimento na segurança escolar.
O democrata Chris Murphy foi realista ao anunciar agora o princípio de acordo: “Este projeto de lei vai conseguir tudo o que é necessário para pôr fim à epidemia de violência por armas de fogo no nosso país? Não. Mas é um progresso real, significativo. O primeiro após 30 anos de bloqueios”.
O presidente Biden também acrescentou o devido: “É um avanço importante, apesar de insuficiente”
De facto, tendo em conta que os republicanos entendem que a Segunda Emenda na Constituição dos EUA (a que consagra o direito de cada cidadão a possuir e usar armas) deve permanecer intacta, o que está a acontecer parece milagre político.
Tudo isto acontece numa ocasião em que os cidadãos dos EUA estão a ser confrontados com a realidade do que aconteceu no assalto ao Capitólio de Washington em 6 de janeiro do ano passado.
A investigação parlamentar conduzida por democratas e republicanos está a expor tudo com todo o detalhe, com imagens e outros testemunhos e documentos inéditos. Tudo se revela altamente comprometedor para o então presidente Trump que aparece como o promotor e mandante do assalto que configura tentativa de golpe de estado.
Todos os principais canais de notícias nos EUA estão a transmitir em direto tudo das audiências iniciadas na passada quinta-feira.
Transmitem todos os canais menos um, a Fox News. Certamente por temor a expor a verdade aos devotos trumpistas, para que estes não fiquem a questionar a fé e a certeza que têm de que Trump continuaria na presidência dos EUA se não fosse o “roubo eleitoral pela totalidade das instituições políticas e judiciais do país”.
Os EUA continuam habitados por dois mundos radicalmente diferentes. É uma divisão política perigosa e que alimenta cada vez mais violência na linguagem e em ações.
Por tudo, este primeiro acordo entre senadores dos dois grandes partidos é um passo virtuoso.
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