O Cazaquistão é um território enorme, com dois milhões, setecentos e vinte e cinco quilómetros quadrados e apenas dezoito milhões e meio de habitantes. Antiga república da União Soviética, tem uma posição estratégica significativa, entre a Rússia e a China, e duas riquezas colossais: petróleo e urânio. Apesar desta situação geográfica, tem conseguido navegar entre os interesses das grandes potências. Depois da independência, em 1990, aproximou-se dos Estados Unidos e da Europa, sem contudo hostilizar os vizinhos. Este equilíbrio deve-se à perícia de Nursultan Nazarbayeb, que consegue ter linhas directas com Putin, deu-se bem com Obama (com quem conversou em Nova Iorque, durante uma reunião das Nações Unidas) e é bem visto em Bruxelas.

O Cazaquistão tem participado em missões de paz das Nações Unidas, pertence a organizações regionais para leste e oeste, e namora uma colaboração mais estreita com a União Europeia – a parte mais ocidental do país está tecnicamente na Europa. Em 2016 passou a integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas como membro não permanente. Na crise endémica que opõe a Rússia e a Ucrânia, tomou uma posição relativamente neutra, embora favorável à Federação Russa (20% da população do Cazaquistão é de etnia russa), sem contudo hostilizar os ucranianos e os seus apoiantes ocidentais. Basicamente, forneceu ajuda humanitária às zonas de guerra de predominância russa, enquanto Nazarbayev afirmava que o essencial era evitar a devastação e a divisão do país.

Mas, se na política externa Nazarbayeb mostra uma flexibilidade muito habilidosa, na interna é um autocrata feroz, egomaníaco e protector duma classe corrupta.

O seu percurso é esclarecedor. Actualmente com 78 anos, entrou para a Liga dos Jovens Comunistas em 1962, quando o país era a República Socialista Soviética Cazaque. Como aconteceu com muitos futuros líderes da U.R.S.S. (como Gorbachev ou Andropov, entre tantos), fez carreira na Komsomol, até chegar a Secretário-geral do PC em 1989.

Com a implosão da União Soviética, Nazarbayev viu uma oportunidade de consolidar o seu poder. Em 1991 organizou e dirigiu a independência do Cazaquistão, tornando-se “Líder da Nação”, título de que nunca viria a prescindir, mesmo quando surgiu a necessidade de criar um simulacro democrático no país. Dentro do sistema pseudo-constitucional, permitiu algumas eleições, a última em 2015, mantendo-se na Presidência com 95% dos votos.

A capital tradicional era Aqmola (ou Almaty), fundada em 1830 como uma fortaleza militar. Não tinha a grandeza que o petróleo e o urânio estavam a trazer para o país, e assim em 1998 Nazarbayev rebatizou uma pequena cidade do século XIX como Astana (“Capital” na língua cazaque), situada no centro geográfico do território.

Com os anos, Astana tornou-se uma cidade monumental kitsch, ainda mais pseudo-futurista do que as cidades da Península da Arábia; junta edifícios colossais e monumentos piramidais – um deles é mesmo uma pirâmide envidraçada – cheios de símbolos tanto da tradição estética local como de todas as tendências da arquitectura moderna. Há, por exemplo, uma praça maçónica, com um gigantesco compasso e esquadro a enquadrar a letra G, um monumento com uma estrela de David, e outra praça com o pássaro mágico Samruk, da mitologia cazaque. Bayterek e é uma torre com cerca de 100 metros de altura; no miradouro do topo ostenta uma reprodução da mão de Nazarbayev. Há arcos triunfais, estátuas, parques e esferas, tudo em proporções colossais.

Longe da capital fica outro colosso, com funções específicas: o Cosmódromo de Baikonur. Dada a sua posição geográfica, é o local ideal para lançar satélites e está “alugado” aos russos. Neste momento, isto é, antes dos lançamentos em Cape Kennedy serem reactivados, é o único de onde se podem enviar cosmonautas para o espaço.

Então, e inesperadamente, no passado dia 19 de março, Nazarbayev assinou a sua resignação – na televisão, numa cerimónia mediática, em que declarou que está na altura do país passar a ser governado pela geração mais jovem.

Mas na realidade o Líder da Nação não pretende sair do poder, e muito menos do papel histórico que se outorgou. Para já, mudou o nome de Astana para Nursultan, não vá a geração mais jovem esquecer o que lhe deve. Depois, continua a ser o Presidente do Conselho de Segurança, que comanda as forças armadas. Mantém o poder de intervir na política do país para o resto da vida e goza de imunidade judicial completa. Os seus bens e da sua família não podem ser arrestados.

O poder institucional passa para Kasym-Zhomart Tokayev, presidente do Senado. Haverá eleições no final de 2020 e, embora Nazarbayev não tenha tornado público a sua preferência por um sucessor, toda a gente pensa que será Tokayev ou Askar Mamin, o actual primeiro ministro. Ninguém concebe que o Líder da Nação não seja ele próprio a fazer a escolha – aliás a opinião geral, até ao ponto em que no Cazaquistão possa haver opiniões, é que Nazarbayev resolveu sair agora para gerir meticulosamente a sucessão, como tem gerido meticulosamente tudo o que acontece no país. Não haverá candidatos da oposição, uma vez que oposição é coisa que nunca existiu. O controlo total da comunicação social, da política, até da estética e da vida privada não permitiram que se formasse qualquer tipo de crítica às decisões de Nazarbayev.

Aliás, muito tranquilizador, o próprio não deixou de dizer: “Saio, mas continuo com o meu povo.”

O Cazaquistão é um espaço quase vazio, povoado por tribos sedentárias muçulmanas que se dedicam à agricultura, com algumas zonas no século XXI: a capital, Nursultan, Almaty, e o cosmódromo de Baikonur. Graças aos rendimentos petrolíferos e minerais, o nível de serviços públicos é muito bom; a taxa de analfabetismo é de 0,5%, o acesso ao ensino superior fácil e a assistência social funciona bem. O endividamento externo é nulo e a abertura a investimento estrangeiro muito grande. O crescimento económico anda pelos 7% anuais. Onde os índices não são tão bons é na liberdade de opinião – está em 161º lugar numa lista de 180 países, segundo o Índice Mundial de Liberdade de Imprensa. No que toca a corrupção está do outro lado da escala, se se pode chamar de corrupção ao sistema em que uma oligarquia de poucas famílias e os seus apaniguados controla pacatamente todas as iniciativas empresariais, inclusive as que implicam investimento estrangeiro.

Enfim, um paraíso, para quem não se ponha com ideias. Porque haveria de mudar, só porque o pai da pátria quer descansar um bocadinho?

[Artigo corrigido às 12h38 do dia 1 de abril de 2019 - A assinatura da resignação aconteceu no dia 19 de março de 2019, e não no dia 24 de abril, como era referido inicialmente]