Nasce o sol nas planícies do centro comercial. Por norma, a esta hora, o ambiente está calmo, mas não hoje, é um dia diferente. Tal como uma pandemia que se espalha por todo o mundo com um simples espirro, também a Black Friday atravessou continentes e chegou a Portugal. Com ela, milhares de espécies migratórias rumam à porta de algumas das lojas que aderiram a este movimento. As portadas ainda se encontram fechadas, mas à porta já se acumulam, em manadas, diferentes espécimes prontos a tirar partido deste oásis no meio da seca do poder de compra. Lá na frente, encostados às grades, estão os reformados que puderam chegar cedo, pois já almoçaram as seis da madrugada. Atrás, seguem os desempregados, esperançosos de conseguir comprar, finalmente, aquele LCD com mais polegadas do que as que têm de QI.
Abrem as portas e começa a debandada para dentro da loja. Quais touros bravos contentes por ir para a arena, entre urros e saltos de cabra-montesa, entram a correr e a espezinhar tudo o que encontram. Agarram os computadores de gaming com desconto que apenas irão usar para ir ao Facebook no Internet Explorer; pegam em aspiradores, robôs de cozinha e gadgets que não sabem bem para que servem, mas que estão a 50%. Houvesse fezes com uma placa a dizer “Antes: 200€ Agora: 100€” e haveria alguns escaravelhos do deserto que trariam para casa dois molhos pelo preço de um.
No meio da confusão surgem os conflitos: leoas fêmeas puxam as extensões da juba umas às outras para tentarem ficar com o último esticador de cabelo; dois machos alfa disputam a última fêmea. Fazem peito, emitem rugidos ameaçadores para ver quem fica com a última Bimby, pois divorciaram-se e não sabem cozinhar. (Sim, neste mundo fictício, a Worten vende Bimbys.) Alguns, arrastados pelo cônjuge, têm o sofrimento estampado na cara. Chegam ao fim sem nada e dizem aos amigos que foram à Black Friday “só para ver”, numa espécie de safari numa reserva natural que, infelizmente, não tem caça furtiva. Fizessem Black Friday nas escolas e talvez a população de gnus selvagens que calcorreiam estas lojas ficasse mais controlada.
Observar este espectáculo é das coisas mais maravilhosas que podemos ver na vida animal. Vendo de cima, dos olhos de uma ave de rapina, a confusão instalada é de um caos aparente, mas de uma beleza rara que aquece o coração. Os animais irracionais buscam o consumo ao máximo e tentam abastecer-se de tudo aquilo que precisam – e do que não precisam ou sabem o que é – para conseguirem sobreviver aos meses frios do Inverno e despachar já as prendas todas de Natal. No entanto, nem todos estão perdidos no frenesim dos descontos. Por entre a multidão há sempre alguns ursos pardos que, munidos de um olfacto quase sobrenatural, seguem o rasto do artigo que querem como se lá tivessem ido no dia anterior estudar toda a planta da loja. No fim, os mais fracos, os necrófagos chegam. Hienas e abutres levam o que sobrou: uma pen de dois gigas, um tapete para o rato e duas pilhas de 9 volts. Tudo com desconto, mas com preço final igual ao da semana passada.
Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:
Para oferecer: Os meus livros com 0% de desconto.
Para ver: Narcos
Para rir: 7.º episódio do Falta de Chá.
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