Mas, então, vários países europeus impuseram os seus temores e recusaram-se a abrir-lhe a porta: alegaram que a evolução democrática da Turquia estava insuficiente e, assim, este enorme país, geoestrategicamente colocado como ponte entre o Ocidente e o Oriente, começou a ir-se embora. Virou-se para o lado de lá.
Cresce, no entanto nesta Turquia onde metade da população tem menos de 30 anos, uma juventude plural que quer a modernidade e o progresso, que rejeita o autoritarismo e que passa por cima das velhas polarizações entre laicos e islâmicos ou entre turcos e curdos. É uma juventude que sonha com a melhor vida em comum, integrando todas as diferenças. São jovens assim que há dois anos protagonizaram as grandes manifestações da Praça Taksim, em Istambul, contra a destruição do parque Gezi.
Também são jovens dessa Turquia democrática a maior parte dos 128 mortos e muitos feridos nos tremendos atentados de sábado em Ancara. Juntavam-se para uma marcha pela paz e em protesto contra a autoritária deriva turca que combina nacionalismo e islamismo. É uma deriva que tem um protagonista indiscutível, Recep Tayyip Erdogan.
Erdogan lidera os últimos 12 anos da vida política na Turquia: primeiro, onze anos como primeiro-ministro (2003-14), agora, como presidente da República. Chamam-lhe “o sultão”. Fez-se na liderança do AKP, partido islamo-conservador. É um homem com múltiplos rostos: em 2003, impulsionou o milagre económico da Turquia e o namoro aos valores da União Europeia; colocou a Turquia como aliado firme do Ocidente no crucial flanco sueste da NATO; chegou a vestir a pele de pacificador, com abertura negocial à hostilizada minoria curda. Depois, Erdogan tornou-se outro: o homem da abertura apareceu fechado numa versão “islamo-nacionalista”, autoritário. Múltiplos fatores concorreram para essa metamorfose. O ressentimento por a Europa não ter acolhido a Turquia na União é, certamente, um deles. A postura autoritária do líder turco ficou evidenciada na repressão dos manifestantes da praça Taksim, em junho de 2013.
Surgiram acusações ao “sultão” de estar a conduzir o resvalar da Turquia para uma ditadura islâmica com constantes violações das mais elementares regras democráticas. A azia de Erdogan cresceu com as eleições gerais de 7 de junho passado: o seu AKP (partido da Justiça e do Desenvolvimento) não só perdeu a maioria absoluta que esperava ter, como deixou de poder avançar com a revisão constitucional que desenharia para a Turquia uma república presidencial com o perfil do “sultão”. E o principal contributo para essa frustração das ambições do partido de Erdogan foi a expressiva votação (13%, 80 dos 550 lugares no parlamento) alcançada por um partido com origem curda, o HDP (Partido Democrático do Povo), formação de esquerda, laica e independentista que, com um discurso próximo do que entusiasmou os manifestantes da praça Taksim, atraiu muito apoio jovem.
Com um partido curdo a estragar-lhe os planos, Erdogan voltou-se contra os curdos. Pôs fim a qualquer hipótese de negociações e retomou o ciclo infernal de ataques e represálias sobre os curdos. Ao mesmo tempo que, como parceiro da NATO, concedeu aos americanos as bases aéreas de onde partem bombardeiros e drones que combatem os terroristas do “califado islâmico”, Erdogan manda os caças turcos atacar os guerrilheiros curdos que combatem o mesmo terrorismo do “califado”. Erdogan tem sido fértil a gerir ambiguidade. Muitos democratas turcos acusam o Ocidente de ter demorado demais a perceber a verdadeira natureza de Erdogan. O Nobel da literatura Orham Pamuk acusa Erdogan pelo estado das coisas na Turquia, com as pessoas reféns do medo. Alerta mesmo para o risco de uma guerra civil. Há o fantasma do levantamento militar como sucedeu em três golpes na segunda metade do século XX.
A menos de três semanas de eleições, os adversários de Erdogan acusam o presidente de tentar usar os atentados de sábado para explorar o sentimento patriótico que possa traduzir-se em votos a seu favor em 1 de novembro. A tensão reflete-se em perseguições aos jornalistas: Bulent Kenes, o chefe de redação da edição em inglês do diário Zaman foi detido por ter escrito os 140 caracteres de um tweet que Erdogan considerou impróprio. Muitos outros jornalistas estão detidos porque o regime toma a crítica como crime.
A Turquia, ferida, mergulhada nas suas contradições, está a sofrer. As guerras nos vizinhos Iraque e Síria contribuem, necessariamente, para as tensões e fraturas atuais no mosaico turco. A Europa talvez tenha abandonado demais a Turquia.
A ter em conta
As notícias que deixam de ser notícia: esta análise de Juan Goytisolo remete-nos para uma reflexão essencial. Designadamente quando são gastas horas e horas com ridículas quezílias futeboleiras que só servem para envenenar a convivência.
A internet tornou obsoleto o negócio da Playboy. A revista deixa de publicar nus.
Ainda os U2 em Barcelona: Mysterious Ways com Bardem, também Penélope e até Letizia.
Uma primeira página escolhida hoje é esta do Le Monde: junta dois sobressaltos, a Turquia a resvalar e a angustiante escalada de violência Israel/Palestina - um ciclo infernal com episódios todos os dias.
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