A atual fase, muito tensa e delicada, tem como detonador da efervescência a escalada da ambição independentista de uma parte - quase metade dos cinco milhões de cidadãos - da Catalunha. O independentismo anda há seis anos, e em especial nos últimos dois, a tentar medir a fortaleza do Estado espanhol. Passou ao ataque e desafiou o Estado. Forçou etapas rumo à proclamação da independência.

A etapa principal na espiral desse processo foi a convocação, pelo governo independentista da Catalunha e pelo parlamento que tem repetida maioria independentista, de uma consulta popular, apresentada como referendo, realizada em 1 de outubro de 2017. O governo de Espanha, então do PP de Rajoy, e todo o aparelho judicial espanhol, proibiram vigorosamente essa consulta, ao ponto de a criminalizarem.

Nove dirigentes políticos catalães, entre eles vários membros do governo catalão então em funções, estão presos há mais de um ano e começam esta terça-feira a ser julgados no Supremo Tribunal de Madrid, acusados de liderarem uma rebelião contra o Estado espanhol. O julgamento vai certamente inflamar ainda mais as tensões.

Faltou ao poder político central em Madrid (o governo de Rajoy, com a cobertura do rei Filipe VI) inteligência política e vontade de diálogo para conseguirem compromissos que evitassem a dramatização que veio a acontecer da escalada independentista.

Tudo isto teve o efeito de terramoto político em Espanha e abriu várias brechas fundas, fundíssimas: uma, entre a robusta parte da Catalunha que quer a autodeterminação por se sentir explorada por Madrid e a grande maioria do Reino de Espanha com o espanholismo exacerbado; outra, entre os moderados no lado espanhol que defendes soluções negociadas, e os que defendem força máxima contra os que querem abalar a coesão de Espanha ao lutarem pela independência.

Estas brechas têm implicações dentro do quadro político partidário central. No ano passado, a tensão do processo catalão corroeu a desgastada condução do governo do PP e precipitou a queda de Mariano Rajoy, com o socialista Pedro Sánchez a conquistar a presidência do governo através de uma precária coligação negativa em que o principal ponto comum era o desejo de derrubar Rajoy. Os independentistas catalães fizeram parte dessa maioria de derrube, e nunca desde então deixaram de chantagear a presidência do governo minoritário socialista, com uma lógica sumária: ou há avanço para a autodeterminação ou deixamos cair o governo.

Sánchez, com margem estreitíssima, explorou o diálogo, tentou a negociação. O problema é que o entendimento fica impossível quando de um lado está quem quer e sente a obrigação moral e legal de defender a unidade de Espanha, e do outro está quem considera irrenunciável a autodeterminação para sair de Espanha.

O simples facto de Sánchez procurar o diálogo com os catalães fez despertar a Espanha mais espanholista. Foi a oportunidade para o Vox, um partido formado que gente que estava na direita do PP, muita dela com nostalgia do tempo do generalíssimo Franco.

Em poucos meses, este monossílabo Vox tornou-se a voz do espanholismo pós-franquista. Uma direita extrema, incluindo gente que defende formas pós-modernas de fascismo, livrou-se de complexos e sentiu que era chegada a hora de ir para a rua defender a causa, encabeçada na circunstância pelo valor maior da unidade do Reino de Espanha.

Há bastante gente interessada nessa causa de que o Vox se tornou bandeira. É assim que o Vox, ao mobilizar 10% dos votos e ao eleger 12 deputados nas eleições andaluzas, contribuiu para pôr fim à hegemonia socialista na Andaluzia e para que tenha formado um governo das direitas. As sondagens estão agora a prever uns vinte e tal deputados do Vox no parlamento espanhol.

Os partidos posicionados entre o centro e a direita clássica (Ciudadanos e PP) começaram por se inquietar com a erupção desta direita-extrema. Depois de algumas hesitações, optaram pela aproximação, em vez da rejeição que muitos moderados do PP e do Ciudadanos reclamavam. A realidade da direita espanhola é hoje um tripartido: PP, Ciudadanos e Vox.

Este tripartido introduziu novidades e incógnitas no quadro político espanhol. Um efeito imediato foi o de maioria das direitas em todas as sondagens sobre intenções de voto em Espanha. O PSOE está na frente, com à volta de 30%, mas PP e Ciudadanos (à volta de 20%), juntamente com Vox (10/12%), têm prometido o controlo das Cortes de Espanha, tal como acontece no parlamento da Andaluzia.

Ao mesmo tempo, toda a direita espanhola está a ser puxada mais para a direita. Viu-se isso na manifestação das direitas, neste domingo, em Madrid. A postura dominante foi de direita toda ela extremada, com muito ódio no discurso.

Esta manifestação na praça dedicada a Colombo em Madrid levanta uma outra questão. Esteve muita gente, mas era de esperar muito mais. Um comentador que a direita espanhola tem como referência, Pedro J.Ramirez, ex-diretor do El Mundo, deixa essa questão bem explícita no comentário que faz no El Español que dirige. Será que a muita gente que faltou é gente da direita que não quer estar de braço dado com o radicalismo do Vox? Será que a direita tradicional se afastou demasiado do espaço do centro?

Tudo isto evolui em cima de dois momentos cruciais nos próximos dois dias: nesta terça-feira começa, no Supremo de Madrid, o julgamento dos líderes independentistas catalães; depois de amanhã, na Cortes de Espanha, em Madrid, vai a votos o Orçamento de Estado para este ano apresentado pelo governo de Sánchez. Para ser aprovado, precisa do voto dos independentistas catalães. O quadro político do próximo futuro espanhol segue condicionado pelos independentistas catalães.

É provável que Sánchez opte por convocar eleições antecipadas para meados de abril (fala-se no dia 14) ou no final de maio (a 26, dia de eleições europeias e, em Espanha, também autonómicas). Se a direita tiver maioria, é de prever grande escalada da tensão com o independentismo catalão.

VALE VER:

São velhas as histórias de guerras de números de participantes em marchas e concentrações. Em Espanha há tradição de muito robusta participação em manifestações. Estive, como repórter, em várias manifestações contra o terrorismo em que houve unanimidade no reconhecimento de mais de um milhão de pessoas. Falou-se mesmo de quatro milhões no repúdio dos atentados de 11 de março de 2004.

Era de prever um mar de gente na manifestação deste domingo em Madrid. Foi anunciado que autocarros estavam ao dispor para transportar, gratuitamente, de diversas partes de Espanha, quem quisesse participar. O lema da manifestação foi “Por una España unida”, e também tinha como obvia prioridade acelerar o assalto ao poder. Era de prever que estivessem várias centenas de milhar de pessoas. Não estiveram. Há quem aponte 45 mil participantes. Há quem ouse falar em 200 mil.

Dá que pensar como essas diferenças estão estampadas na primeira página de diferentes jornais de Espanha nesta segunda-feira:

O ABC, espanholista, com alinhamento editorial à direita, mostra, numa imagem aérea, a multidão, que nos aparece enorme, e que é exposta como a Espanha. Assim.

O EL PAÍS, sempre acérrimo na denúncia do independentismo, opta por mostrar apenas a imagem do momento em que os líderes da direita e da extrema-direita estão lado a lado, e o título refere “dezenas de millhar de manifestantes”. Assim.

No La VANGUARDIA, diário de Barcelona, catalão mas com posição editorial hostil ao independentismo, é destacada a “escassa mobilização da direita”. Assim.

No ARA, diário catalão, que privilegia a opinião favorável aos independentistas, a manifestação em Madrid foi um fracasso para a tripla direita espanhola. Assim.

Se observarmos outras das muitas primeiras páginas de hoje em Espanha, continuaremos a ver diferentes medidas de um mesmo acontecimento. Tanto pode ser considerado como “fracasso” e como “êxito retumbante”.