Os Estados Unidos da América foram fundados com o ideal de país livre com sociedade livre. O infame ataque terrorista da al-Qaeda em 11 de setembro de 2001 fez disparar medos que levaram a restrições várias, desconfianças xenófobas e uma torrente de propaganda política contra os imigrantes e as minorias raciais. Porém, esse dedo acusador tem sido apontado na direção errada: a realidade evidencia que o problema maior não está nem nas minorias étnicas nem nos migrantes que procuram nos EUA vida melhor; um grave mal da América está nos supremacistas brancos. Eles servem-se das armas de fogo, como as AK-47, que têm ao dispor com abundância, para cometer sucessivos repugnantes crimes, alimentados pelo ódio racial, que resultam numa contínua horrível matança. O tempo passa e os políticos – todos! – continuam impotentes ou cobardes perante o lóbi da indústria das armas. É assim que segue imparável esta dupla tragédia, a das armas de fogo na mão de todos (até mesmo quem sofre de perturbação mental) e aquela outra que resulta da exploração da escalada do ódio dos supremacistas brancos.
A triste realidade da arrogância racial branca é uma praga antiga, vem do tempo da fundação dos Estados Unidos. Teve expressão brutal na escravatura e no modo como quem tem pele escura foi discriminado nos últimos dois séculos. Tem desenvolvimentos num nacionalismo racista que em terra de disparo fácil se torna assassino.
Sucedem-se os casos. Timothy McVeigh assumia-se supremacista branco. Foi da cabeça tóxica dele que saiu, em 1995, o terrível atentado bombista a um edifício federal de Oklahoma. Causou a morte de 168 pessoas.
Os lugares mudam, os números mudam, mas o que acontece nos Estados Unidos vai todos os dias dar ao mesmo: pessoas mortas em ataques por armas de fogo. Em média, são 85 em cada dia. É uma tragédia diária, silenciosa. Às vezes, um só atirador abate várias pessoas, e então o caso tem destaque nas notícias. É o que aconteceu na manhã deste sábado num centro comercial de El Paso: vinte pessoas que tinham ido às compras morreram ali, outras vinte estão no hospital. É o que voltou a acontecer 13 horas depois frente ao bar Ned Peppers, em Dayton, no Ohio: outros dez mortos e mais 27 feridos.
O atirador em El Paso, uma criatura que não merece que o nome dele fique escrito, é um rapaz com 21 anos contagiado pelo ódio. Viajou uns 700 quilómetros, de Dallas a El Paso, sempre no Texas, para conduzir o massacre. Minutos antes de desencadear a premeditada matança publicou, num fórum frequentado por quem tem posições ultra à direita, o que aparece como um manifesto em que se explica: “Este ataque é uma resposta à invasão hispânica do Texas”. Acrescenta: “Estou apenas a defender o meu país da substituição cultural e étnica causada por essa invasão”. É facto que o matador pode invocar que ouve o chefe político do país com discurso anti-imigrantes e de hostilidade aos latinos, capaz de gerar este ódio.
El Paso é uma cidade com uns dois milhões de pessoas, em cima da fronteira dos Estados Unidos com o México. À volta de 80% dos residentes em El Paso são latinos. Sempre foi assim. Quando a colonização espanhola chegou ao Texas aquela era a terra de apaches, de comanches e de mexicanos. O que é hoje o Texas fazia, até 1836, parte do território do México. O Texas, imenso (quase 700 mil km2), só em 1845 passou a ser estado, o 28º, dos Estados Unidos da América.
O que aconteceu em El Paso e em Dayton foram dois episódios mais da matança coletiva conduzida nos EUA através de armas de fogo. Chocam e tornam-se notícia quando acontecem em lugares públicos, frequentemente uma escola, uma igreja ou num centro comercial. Geralmente, as vítimas são atingidas não por algo do que sejam, não interessa a raça, religião, idade ou condição económica, também não é por algo que tenham feito. São o alvo apenas porque o acaso as levou aquele lugar. Mas estas matanças coletivas são parte ínfima na quantidade de mortes causadas nos EUA por armas de fogo.
A realidade dos números é devastadora: vamos com 217 dias neste ano e, tal como atesta a ONG Gun Violence Archive, só no que vai deste ano, já houve nos EUA 251 ataques armados que causaram, cada um, a morte de quatro ou mais pessoas; há, em média, 85 mortes por dia nos EUA causadas por armas de fogo. Muitas são suicídios, favorecidos pelo fácil acesso a armas de fogo. Sabe-se que há mais de 390 milhões de armas nas mãos de cidadãos dos Estados Unidos. A média aponta para uma arma por pessoa. Evidentemente, há quem tenha muitas.
É devido reconhecer que esta violência armada quotidiana nos EUA tem muitas causas. A questão racial é apenas uma delas.
Desespera a impotência dos líderes políticos. Essa sensação de fracasso foi flagrante com Obama. Vimos o anterior presidente dos EUA com lágrimas nos olhos após a matança de estudantes na escola de Newtown. Antes, após os massacres em outras escolas, as de Santa Barbara e de Columbine, o então presidente tinha prometido medidas para controlo do acesso a armas de fogo. Não conseguiu impor o que prometeu. A triste realidade mostra que os chefes políticos não têm poder para travar o lóbi das armas que, ao levar a melhor, deixa o caminho aberto para este terrorismo.
Obama não conseguiu. Trump não quer. Pior, a retórica agressiva do atual presidente, ao referir “invasão de clandestinos”, ao associar migrantes a “perigosos criminosos”, ao ousar o desaforo de mandar congressistas negras “para a terra delas”, está a atiçar o ódio racial.
A questão da posse de armas é muito complexa nos EUA onde uma emenda à Constituição consagra o direito à auto-defesa e, para isso, a posse e uso de armas de fogo.
No Congresso dos EUA, mesmo quando os democratas estão em vantagem sobre os republicanos, nunca houve maioria capaz para impor o controlo das armas de fogo.
Há movimentos de jovens que exigem restrições à posse de armas, recebem dos políticos declarações de simpatia, mas nada mais do que isso.
O cenário fica agravado com a retórica pirómana do atual presidente que assim alimenta o fogo do terrorismo interno.
A trágica constatação é a de que não há no horizonte alguma esperança de decisão política que possa travar esta epidemia que ameaça os Estados Unidos da América. The Newyorker levanta a questão da internet como instrumento para a propagar o ódio .
VALE VER E OUVIR:
Aí está o flyboard. Zapata, o homem voador atravessou o canal da Mancha a voar. Está a chegar-nos a trotinete aérea?
A experiência de estudantes migrantes contada em podcast.
Um tema de capa que suscita discussão.
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