1 – Ensombrado pelo Sol

Há 15 dias, a propósito do aniversário da morte do António Variações, dediquei-lhe um texto de homenagem. Registei por lá a memória de que o artista teria morrido num “dia solarengo”. Assim mesmo, “solarengo”. Claro que estava a pedi-las, e não demorei a receber mensagens de chacota por parte de alguns amigos. É verdade que, ao ser recordado do meu engano, eu podia ter corrigido a publicação, mas acontece que esta é uma das falhas que exige troça e penitência mais do que correcção. Utilizar “solarengo” em vez de “soalheiro” — pese o facto de alguns dicionários já aceitarem (mal, a meu ver) o emprego da palavra tal como a usei — é um daqueles erros de palmatória clássicos que, na hierarquia da tarouquice, está alguns degraus acima do “há tempos atrás” e pouco abaixo do uso comum da palavra “houveram”. Agradeço sugestões de auto-punição. Por outro lado, prometo continuar a corrigir com severidade quem pronunciar a palavra “mocassins” como se fosse francesa.

2 – Escapar à tragédia

Só sei que nada sei, e isto não é uma paráfrase socrática; não é um paradoxo filosófico nem uma qualquer manifestação de humildade. Nada sei, é o que sei. Já nada sabia há um semana, quando não consegui entregar o meu artigo de opinião. Pedi para adiá-lo uns dias, mas aquilo que sabia manteve-se nulo. É complicado redigir uma crónica quando o tema ao qual não podemos escapar é o tema exacto sobre o qual nada sabemos. Talvez me reste esta certeza: um nó na garganta não é uma opinião.

"Tristeza é conhecimento: aqueles que mais sabem devem ser os que mais penam face à verdade fatal; a Árvore do Conhecimento não é a Árvore da Vida". Agora sim, parafraseava — não Sócrates, mas Byron. Gostava muito de acreditar no insigne Lord Byron, mas neste caso apenas consigo citá-lo, não subscrevê-lo. Entre a Árvore do Conhecimento e a Árvore da Vida interpõe-se árvores em cinzas, e o meu estado era o duma tristeza que parecia tudo menos conhecimento. A “verdade fatal” conferia-me só ignorância fumegante, e um luto que ultrapassou os seus prazos institucionais.

O que não sei sobre os incêndios do passado dia 17 de Junho pouco será de ordem factual, ou técnica. Estive informado, tanto quanto estive horrorizado. O problema não era o desconhecimento, antes uma profunda e letárgica estupidez. Dei por mim a concordar com tudo e o seu contrário: concordei com os que achavam que era tempo de lamento, não de indignação, e concordei com os que defendiam que a indignação era o lamento mais útil. Concordei com os que clamavam contra os aproveitamentos político, mas também com os que usaram as calamidades para clamar por políticas que se aproveitem. Concordei com o levantar de braços, o baixar de braços, as mãos orantes e o apontar de dedos. Não abunda o critério quando me sobeja a tristeza.

Longe de mim criticar quem opinou, ou quem teve o discernimento para chover no molhado e queimar no ardido. Nem me meto, sequer, em ironias com os profetas do a posteriori. Eu também tentei tornar-me isso tudo. Busquei alento para escrever, fosse o que fosse, mas o ânimo chega a ser só aquela manobra de diversão enquanto o esquecimento não chega. Apenas me lembrava que nada sabia, e que um nó na garganta é a única opinião.

Felizmente nem todos se tolheram, e nem tudo em mim se tolheu. Até a inacção não resistiu à força do nosso melhor, à força do povo que sabe usar grande desprendimento contra grandes desfalques. Graças a Deus pela solidariedade verdadeira — a que age. E até eu, nada sabendo, consigo perceber que não será fácil travar o fluxo de discussões e investigações, mesmo que haja gente a sulcar o terreno para desviar o curso das acções, ou atenuar as perguntas.

Isto era suposto ser um pequeno apontamento para justificar a minha ausência na semana passada. Entretanto chego à conclusão que o assunto não só dispensava o meu parecer como, por enquanto, até está melhor assim. Era para deixar aqui um “Desculpem o meu silêncio”, mas parece-me ser mais adequado um “Não têm de quê”.

3 – Bate na madeira

Num discurso longo (porque a extensa programação assim o exigia) o hábil orador, e excelente director artístico, Tiago Rodrigues apresentou a nova temporada do Teatro Nacional D. Maria II. Para pautar a intervenção com algum humor, o Tiago não se esqueceu de “bater na madeira” 3 vezes seguidas quando se falou em “Macbeth”, a peça que se crê atrair azar (tantos são os relatos de coisas que correram mal em encenações por todo mundo desta obra shakespeariana). Para além de aligeirar a prelecção, o gesto do director artístico aplacou as superstições duma audiência cheia de gentes do Teatro.

Tenho  o radar particularmente atento a superstições desde que, recentemente, estive rodeado de actores num evento de storytelling. Antes de entrarem em palco, é costumeiro desejarem entre si aquela famosa abundância excrementosa. São votos que me deixam sempre curioso. Até tenho noção histórica de como surgiram; porque é que se perpetuaram – essa é a dúvida. Será tal superstição uma verdadeira crença em poderes ocultos, será uma formalidade ritualística (como a cerimónia de chá japonesa, ou a continência militar), ou será uma espécie de placebo intencional (dos que não acreditam na superstição per se, mas temem que o abandono da praxe lhes afecte inconscientemente a prestação)? Também pode ser uma súmula disto tudo. Ou uma piada que se eterniza. Ou pura etiqueta. Ou uma perturbação obsessiva-compulsiva.

Enquanto profundo céptico, o tema das superstições oferece-me um espectro de reacções que vai do fascínio à impaciência. Acho piada ao lado ritualístico nos exemplos dados, e condescendo muito quando, mais do que crendice, a superstição funciona como um gatilho. Se exercita conscientemente a concentração, e aponta para um bom desempenho de quem a pratica, a superstição ainda me granjeia alguma tolerância (mas será que pode continuar a ser chamada de superstição?). É quando tenta visar o desempenho dos outros que a superstição me começa a moer, sobretudo se os outros estiverem distantes, apenas a um alcance sobrenatural. O futebol é bom exemplo: não olhar para a televisão durante a marcação de uma grande penalidade, para que o rematador falhe; repetir o mesmo almoço que se teve da última vez que a nossa equipa ganhou a determinado adversário, esperando que o resultado também se repita; vestir aquela roupa daquela cor, para que o Ronaldo marque mais um golo lá na Rússia.

A superstição pode bem ser a derradeira presunção. Faz-nos procurar protagonismo naquilo a que não temos acesso. Põe-nos no papel de intervencionistas cósmicos. É um exercício de egolatria, um mecanismo de defesa contra a noção de impotência. A via de altivez até torna os espiritualmente empedernidos em crentes maleáveis, muito exigentes com o mundo e pouco exigentes com as suas macumbas. Ainda assim, o meu cepticismo não tem que ver com humildade; não sou avesso a superstições só por me achar demasiado pequeno para interferir em desígnios universais — se fosse só esse o motivo, então até teria de aceitar a astrologia, por me achar demasiado pequeno para não ser influenciado por coisas maiores, como constelações.

Não pretendo ser polémico ao juntar aparentes alhos e bugalhos, superstições e astrologias, mas diria que a natureza do meu cepticismo com ambas é exactamente a mesma. A única coisa vagamente científica que sei sobre signos é que prefiro o zodíaco ocidental ao zodíaco chinês – se vamos chamar “boi”, “porco” ou “cabra” a alguém, que seja por indignação furiosa, não por tipologia astrológica.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Por vezes escrevo recomendações em funções do texto, hoje escrevi parte do texto (o último segmento) a reboque desta recomendação. A temporada 2017/2018 do Teatro Nacional D. Maria II já começou a ser desvendada.

Ainda no mesmo teatro, há aplausos de pé para serem distribuídos pelo Café Garrett, restaurante do chef Leopoldo Garcia Calhau. A mais sentida das minhas sugestões (para além do delicioso pudim de nozes) também pode aparentar ser a menos consensual. É uma entrada, e é um delicioso ensopado de cabeça de borrego. Quem disser que este prato não é para os mais sensíveis ignora a sensibilidade com que ele foi criado, e as sensações que desperta.