Jackie Stewart. Sir Jackie Stewart, prefixo real, atribuído por Sua Majestade, em 2001, antecede o nome que, por acaso, não consta do registo à nascença (foi inscrito como John).
Tricampeão do mundo de Fórmula 1, em 1969, 1971 e 1973, está em Portimão, no Autódromo Internacional do Algarve, para assistir ao Fórmula 1 Heineken Grande Prémio de Portugal, um circuito que pisa pela primeira vez.
Começa por elogiá-lo. “Os pilotos da Moto GP dizem que é o melhor do mundo”, confidencia sobre um asfalto que ainda não pisou.
Aos 81 anos, com a voz a sair baixinha, arrastada, protegido por uma máscara a condizer com as calças em tons de kilt escocês, de cabelo longo, imagem de marca que usou, desde sempre; uma mistura entre a pop-star e o playboy que nunca foi (sempre foi homem de família e devoto da mulher e dos dois filhos). Sir Jackie Stewart falou com o SAPO24 sobre a sua vida, carros, glamour, segurança, pilotos e o dinheiro na categoria rainha do desporto motorizado.
Ouve mal. Foi um aviso à navegação feito pelos assessores. Confirma-se à primeira troca de palavras. O barulho dos carros que aceleram nos treinos não ajuda.
“Nunca tive um carro chique, um Mercedes ou um Ferrari”, sorri. “Tenho (conta) 1, 2, 3, 4, 5 e 6 carros. Um BMW de sete lugares. A minha mulher (Helen) tem demência e necessito de levar enfermeiras e toda a gente no carro. Um outro BMW, um Audi e um Range Rover...”, enumera o antigo piloto.
Gosta de guiar. Faço-o todos os dias. “Olhe, guio para passear os meus dois cães. Levo-os até à floresta”, nota. E acrescenta. “Toda e qualquer pessoa no mundo guia um carro. Nos semáforos, há sempre alguém que diz querer ser um Alain Prost”.
“Os anos 60 e 70 anos foram glamorosos”
Leva mais de 50 anos de vida da F1. Foi piloto (1965-1973) e dono de uma equipa (a Stewart, de 1997 a 1999, ano em que foi vendida), comentador e é embaixador de marcas como a Heineken ou a Rolex.
A sua vida dá um filme. Dava não, deu. À frente das Netflixs desta vida. Em 1971, Jackie Stewart e Roman Polanski, passaram um fim de semana juntos durante o Grande Prémio de Mónaco. O encontro inédito deu origem ao filme de Frank Simon. “Um fim de semana com um campeão”.
As bobines não saíram da gaveta até que, quarenta anos depois, em 2013, Polanski decide remontá-lo, acrescentar minutos e apresentá-lo no Festival de Cannes.
O saudosismo entra na conversa. “Não penso no que tenho saudades. Ainda acho a Fórmula 1 um mundo lindo, colorido, excitante e glamoroso”, descreve o “the Flying Scot” (escocês voador), como era conhecido.
“A F1 tinha, então, uma camaradagem na generalidade boa. Viajávamos juntos, partilhávamos quartos. Os anos 60 e 70 anos foram glamorosos. Fangio, Stirling Moss, carros a alta velocidade, a música dos Beatles e Rolling Stones. É glamoroso, colorido, excitante e perigoso. E o perigo, então, era afrodisíaco”, assume. “As pessoas gostam de ver acidentes, mas não gostam de mortos. E o número de mortos foi demasiado. Todos os meus amigos morreram. 57, do meu tempo”, lamenta.
Deixou as corridas quando François Cevert, colega de equipa, morreu, em 1973, nos treinos para o GP dos Estados Unidos. Jackie Stewart, ele mesmo escapou ileso a um acidente mortal, na Bélgica, 1966.
Stewart pugnou sempre pela segurança nas pistas e de pilotos. Os capacetes a cobrir a cara e o fato anti-chamas foram uma introdução que nasceu da cabeça do piloto escocês quando ainda corria. A obsessão leva-o, numa entrevista, em novembro de 1990, com Ayrton Senna, a questionar o comportamento em pista do piloto brasileiro.
Regozija-se pelo caminho seguido pelas quatro rodas. “Agora é mais seguro, fantástico. Com a tecnologia, os pilotos estão sentados numa célula de sobrevivência. E a ventilação... quando os pilotos tiram o capacete nem sequer escorre um pingo de suor. Estão hidratados e tudo, bebem pelos tubos”, exclama.
“Não consigo ler e soletrar palavras. Sou um desastre. Mas no que faço sou brilhante”
Recua no tempo. Ao tempo anterior à entrada no “Circo” da F1. “Fui mecânico e só comecei a andar de carro aos 23 anos. Hoje, os pilotos pegam num volante quase de fraldas. Andam em karts a partir dos 8 anos”, compara.
“Era casado quando guiei o primeiro carro (23 anos). Antes era atirador pela Escócia. Competia em Europeus e Mundiais, mas não dava dinheiro e tinha que sustentar família”, recorda. Retirou diversas lições de arma em punho. “O tiro ensinou-me bastante. Concentração. Não podia estar sob pressão e mostrar nervosismo. Perdemos um alvo e nunca mais recuperamos. Na pista, após um pequeno erro, podemos recuperar. Aprendi bastante na carreira com um desporto amador”, sublinha.
A doença que padece, a dislexia, diagnosticada em 1980, curiosamente, ou talvez não, permitiu-lhe alcançar o sucesso ao volante. “Não consigo ler e soletrar palavras. Sou um desastre. Mas no que faço sou brilhante. Falava com os mecânicos e conversava muito com eles sobre a doença”, relembra. “Quem tem dislexia...pensamos fora da caixa. Da Vinci, Churchill, Einstein, Spielberg, todos disléxicos e pessoas muito criativas”, exemplifica.
O primeiro piloto a abrir uma garrafa de champanhe celebrou quando um recorde seu foi batido
Diz ter sido o “primeiro piloto a abrir uma garrafa de champanhe na F1”. Celebrizou 27 vitórias, um recorde que perdurou até Alain Prost ultrapassá-lo em Portugal, no GP do Estoril, em 1987.
“Fiquei contente. Celebrei com uma garrafa de Moet & Chandon, no pódio, com Prost. Não houve desentendimentos, desilusão, não fiquei aborrecido, nem perdi nada. Foi bom que alguém de qualidade ter ficado com o meu recorde”, assume. “Perdi o meu título. Ele foi o homem que o bateu”, continua.
A conversa entra nas comparações. Um campo onde não gosta de se movimentar. “Prost foi melhor do seu tempo. Melhor que Senna, piloto sempre no limite. Alain era muito técnico, metódico. Como Jim Clark. E Fangio”. Faz a pausa quando fala de Juan Fangio. “É provavelmente o melhor de sempre, porque ganhou 4 títulos, em 4 carros diferentes, em 4 anos diferentes. Mas isso é o passado”, fecha o assunto, sem esquecer Lewis Hamilton.
O piloto britânico da Mercedes pode, em Portimão, bater o recorde de Michael Schumacher (92 vitórias). “A máquina tem de ser boa. E se for muito boa, levas mais facilmente o carro ao limite e o piloto ganha com isso. É por isso que a Mercedes é o melhor carro. Podes, em certas circunstâncias retirar vantagens das mãos do piloto, mas trens que ter a máquina certa”. Foi a forma encontrada para se desviar da recente polémica em que se envolveu com o hexacampeão do mundo. Falou do carro. E não de de quem o conduz.
“Tive muita sorte. Sobrevivi a tudo. Vi as mudanças, o crescimento, vi, fiz parte dele”
Entre avanços e recuos, viagens ao passado e os caminhos do presente reconhece as diferenças em benefício da atualidade. “No meu tempo necessitava de 15 a 20 voltas para descobrir todos os cantos do circuito. Hoje, em cinco voltas, os pilotos já sabem tudo. Antes de saltarem para a pista já andaram nos simuladores. São os mais sofisticados no mundo. Mais dos que são utilizados nos aviões”, atira.
“Quando fui campeão, tínhamos 17 pessoas connosco ao Grand Prix. Hoje temos 100 na box. Para tratar de duas bailarinas das corridas”, ri. “Nos meus dias não tinha este paddock. As multinacionais fizeram da F1 um desporto melhor. O desporto está maior”, reconhece.
“Tive muita sorte. Sobrevivi a tudo. Vi as mudanças, o crescimento, vi, fiz parte dele”, reconhece Jackie Stewart, piloto amado globalmente por diversas gerações de fãs, verdadeira pop-star, da TV aos paddocks, depois de ter sido no carro. “Tive sorte”, repete. “A minha relação com o desporto é única. Pela posição e pelo tempo que estive e estou no desporto”, atira o antigo campeão.
“Nunca tens a certeza se serás o melhor. É muito difícil. Nunca houve outro Fangio, Moss, Prost e Sena...”. E o próximo Jackie Stewart, existirá, questionámos. Respondeu com um sorriso. Dois minutos depois de ultrapassado o tempo destinado à conversa.
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