O Ministério da Saúde soube desde cedo que as vacinas da gripe sazonal não iriam chegar para todos, nem sequer para os grupos de risco. Ainda assim, apostou numa forte campanha de vacinação, frustrando as expectativas de muitas pessoas que quiseram vacinar-se e não conseguiram. Ao todo, Portugal comprou 2.510.000 vacinas (2,070 milhões para o SNS, 440 mil para as farmácias), quando só a população com mais de 65 anos, e por isso com recomendação para tomar a vacina, é superior a dois milhões.
A Direcção-Geral da Saúde afirma que a compra das vacinas foi feita no início do ano, "antes da pandemia" ter chegado a Portugal, através dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. Quando, mais tarde, tentou reforçar essa quantidade, já a disponibilidade de vacinas produzidas no mercado mundial estava praticamente esgotada.
Nem o Ministério da Saúde nem a Direcção-Geral da Saúde especificaram a data da compra, e no site dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) torna-se difícil encontrar uma correspondência com as informações prestadas pelas autoridades, já que a discriminação específica "vacinas gripe" não aparece nas datas referidas, mas apenas posteriormente.
Para as farmácias, a situação revelou-se ainda mais grave, pois os formulários dos armazenistas para as encomendas chegaram entre agosto e início de setembro, numa altura em que já era previsível a corrida às vacinas. Ao todo, para as 2449 farmácias certificadas para vacinar foram disponibilizadas 440 mil vacinas, embora os pedidos fossem quatro vezes superiores.
Além de as farmácias terem recebido menos 160 mil vacinas do que no ano passado, as doses estão a chegar aos poucos desde o dia 19 de outubro e até agora foram dispensadas apenas 205.996 vacinas, das 440 mil encomendadas. Foi tudo o que chegou.
São muitas as queixas, de norte a sul as farmácias reclamam por até ao momento terem recebido apenas parcelas muito pequenas das suas encomendas. Isabel Simões, com farmácia em Lisboa, seis pessoas ao balcão, é apenas um entre centenas de exemplos: "Pedi 400 vacinas e recebi 80 na primeira tranche, mais 90 agora. O armazenista disse-me que na próxima entrega serão dez", conta.
Pior: "As farmácias sempre receberam vacinas e fizeram a vacinação sem problemas. Desta vez a senhora ministra quis intervir e estragou tudo. Parte das vacinas que viriam para as farmácia foram requisitadas para o SNS e foi ela [Marta Temido] que programou as entregas. Além disso, falhou a comunicação", denuncia.
Ninguém consegue explicar porquê, mas a Mylan, que produz a Influvac, a marca distribuída este ano pelas farmácias, garantiu ao SAPO24 que “para a época de vacinação de 2020/2021, a empresa não só tem cumprido os seus compromissos para com o SNS, entregando as doses dentro do prazo, como tem consistentemente antecipado a entrega das mesmas. Confirmamos ainda que este ano fornecemos mais doses ao mercado português versus 2019".
Pode parecer confuso, mas não é. É que além de fornecer as farmácias, a Mylan está também a fornecer o SNS, que já esgotou todas as doses disponíveis de Vaxigrip, a vacina da gripe de outra farmacêutica, a Sanofi. Os laboratórios remetem mais explicações para "as autoridades" ou mesmo para a Associação Nacional de Farmácias (ANF).
Na realidade, a Mylan recusou-se desde o início a deixar de fora as farmácias, quando se verificou que as vacinas não chegariam para as necessidades em Portugal. Embora não tenha conseguido satisfazer todos os pedidos - cerca de quatro vezes mais do que o habitual - e tenha até reduzido o número de doses em relação ao ano passado, foi possível distribuir o mal pelas aldeias e chegar (mal) às farmácias e SNS, que por estes dias recebe uma tranche de 270 mil vacinas - que, com as 1,8 milhões de doses já recebidas, perfazem a totalidade da encomenda para o Serviço Nacional de Saúde.
Note-se que no ano passado, de acordo com o boletim informativo de compras públicas na saúde Nº.45, a SPMS adquiriu 1.493.203 doses de vacinas contra a gripe para instituições do SNS. Este ano, comprou apenas mais 576.797, muito pouco, tendo em conta a pandemia, o envelhecimento da população e a corrida às vacinas provocada pela Covid-19.
Normalmente, sobram vacinas contra a gripe no mercado português. No no passado, foram utilizadas 99% das vacinas disponíveis através do SNS, e nas farmácias, das 600 mil recebidas, foram utilizadas 543 mil, ou seja, sobraram 57 mil doses. Note-se que as vacinas não podem ser devolvidas ou vendidas no ano seguinte, já que todos os anos contêm três estirpes diferentes de vírus inativos, que provocam a produção de anticorpos, escolhidos de acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde.
DGS: uma estratégia falhada?
O Programa Nacional de Vacinação é uma atribuição do Estado. O Ministério da Saúde define o número de doses adquiridas para cada época vacinal, os grupos de risco prioritários e as condições de administração da vacina nos cuidados primários de saúde.
A questão que se coloca é relativa à estratégia definida, nomeadamente através da Norma N.º 016/2020, de 25 de setembro de 2020 , assinada por Graça Freitas, quando já era possível saber que o número de vacinas não seria suficiente para todos os grupos definidos como prioritários.
"Em 2020, em contexto de pandemia Covid-19, são adotadas medidas excecionais e específicas no âmbito da vacinação gratuita contra a gripe, nomeadamente o início mais precoce em relação aos anos anteriores, a vacinação faseada e a inclusão na gratuitidade dos profissionais que trabalham em contextos com maior risco de ocorrência de surtos e/ou de maior suscetibilidade e vulnerabilidade", define o documento.
Assim, "a 1ª fase da vacinação gratuita, que tem início a 28 de setembro, destina-se à vacinação em determinados contextos, incluindo residentes, utentes e profissionais de estabelecimentos de respostas sociais, doentes e profissionais da rede de cuidados continuados integrados, profissionais do SNS e às grávidas. A 2ª fase, que tem início previsto a 19 de outubro, integrará os outros grupos alvo abrangidos pela vacinação gratuita, incluindo os cidadãos com idade igual ou superior a 65 anos."
Depois vêm as recomendações: "A vacinação contra a gripe é fortemente recomendada para os seguintes grupos prioritários": "pessoas com idade igual ou superior a 65 anos; doentes crónicos e imunodeprimidos, com seis ou mais meses de idade; grávidas; profissionais de saúde e outros prestadores de cuidados". Mais: "Recomenda-se também a vacinação das pessoas com idade entre os 60 e os 64 anos".
Ora, sabe-se que a população com 65 ou mais anos é superior a dois milhões de pessoas. Quanto aos profissionais de saúde, entre médicos, enfermeiros e técnicos de diagnósticos, só no SNS existiam 102.612 em 2018, de acordo com a Pordata. Diabéticos Tipo1, de acordo com o Mistério da Saúde, há entre 50 mil e 60 mil. Faltam as grávidas, os doentes com cancro, os asmáticos, doentes renais e cardíacos e tantos outros. Mesmo tendo em conta a acumulação de alguns destes critérios na mesma pessoa, o número é largamente superior à quantidade de vacinas, que devem ser administradas "durante o outono/inverno, de preferência até ao fim do ano civil."
Uma da opções, teria sido redefinir o critério de "prioritário". Esta é, aliás, uma das muitas críticas ouvidas a utentes e farmácias. Para perceber melhor, basta saber que há pessoas saudáveis com mais de 65 a ser vacinadas, enquanto doentes com cancro em faixas etárias inferiores continuam por vacinar. Porque assim ditaram as regras da DGS.
De acordo com a norma atrás referida, "a operacionalização da vacinação gratuita contra a gripe, em contexto de pandemia, contempla cenários alternativos e complementares com organização a nível regional e local, incluindo a vacinação em farmácias comunitárias". Foi neste âmbito que foi criado o programa Vacinação SNS Local.
Burocracia: 23 passos para registar cada vacina
Numa tentativa de libertar os centros de saúde, o Ministério da Saúde lançou à Associação Nacional de Farmácias e aos municípios portugueses um desafio, criando o programa Vacinação SNS Local, para o qual canalizou 150 mil vacinas (das suas 2.070.000) a título gratuito.
A vacinação implicou a adesão das câmaras municipais e farmácias ao programa, através de uma plataforma específica para o efeito. Inscreveram-se 108 municípios (de 308) e 2384 farmácias.
Como condição, a DGS impôs apenas que as vacinas fossem dispensadas a pessoas "com mais de 65 anos de idade", seguindo uma ordem de chegada ou lista de espera. Esta condição, obrigou a que muitas pessoas com 65 anos em perfeitas condições de saúde fossem vacinadas, deixando para trás, por exemplo, doentes imunodeprimidos, nomeadamente pessoas com cancro.
Isabel Tavares-Ribeiro dos Santos, doente oncológica, foi uma das muitas pessoas que se viu nesta situação. Em teletrabalho, só conseguiu a vacina na passada quinta-feira, dia 19 de novembro, e teve de a pagar do seu bolso (25 euros, incluindo serviço ao domicílio), pois tem menos de 65 anos (51).
De acordo com uma circular, "as equipas das farmácias serão vacinadas prioritariamente, em simultâneo com as outras equipas de saúde, tendo o SNS disponibilizado 10.000 vacinas para esse efeito", três por farmácia. Mas, além de muitas farmácias terem equipas superiores às vacinas a que têm direito (criando um problema de equidade; dos quatro ou cinco quem vai tomar a vacina?), dada a escassez de doses, muitos farmacêuticos optaram por ceder as suas aos utentes.
Foi o caso de Cristina Nápoles, farmacêutica, que recebeu três vacinas para a farmácia que tem em São Domingos de Benfica desde 1992. "Decidi abdicar da minha vacina, até porque somos sete pessoas a trabalhar na farmácia. Embora nem todos façam vacinação e estejam na linha da frente, há quatro farmacêuticos e dois técnicos, não seria justo uns ficarem de fora. Com que justificação? Como sou saudável, decidi imediatamente ceder a minha vacina ao Sr. Vítor, um utente já com idade e com poucos recursos. Os outros seguiram o exemplo, e assim foi vacinada também a mulher do senhor Vítor e a Sra. D. Cremilde", a terceira na lista de espera".
Também Isabel Simões fez o mesmo: "Não nos vacinámos". Ou a família Carvalho, com diversas farmácias no Algarve e Douro. Os exemplos replicaram-se pelo país e as vacinas foram cedidas a doentes crónicos ou pessoas com 65 ou mais anos.
Outros responsáveis, apesar de concordarem que as condições são excepcionais, lembram que as farmácias podiam ter ajudado muito mais, até porque, ao contrário dos quartéis de bombeiros ou juntas de freguesia em que dezenas de pessoas foram vacinadas nos municípios aderentes, há doze anos foram obrigadas a investir em frio, adrenalina e oxigénio (para socorrer possíveis efeitos alérgicos), marquesas ou cursos de formação, entre outras despesas. Afinal, tendo a logística pronta, porque não contar com as farmácias como cadeia complementar aos SNS na vacinação, questionam.
Os custos parciais do serviço de administração da vacina da gripe no âmbito do programa serão remunerados às farmácias através de um PVP (preço de venda ao público) de 2,5 €, que foi convencionado com o Ministério da Saúde. O financiamento deste serviço envolve ainda o Fundo de Emergência Abem Covid-19, com apoios europeus (Portugal 2020), da Associação Dignitude, uma instituição particular de solidariedade social que tem por missão o desenvolvimento de programas solidários de grande impacto social, que promovam a qualidade de vida e o bem-estar dos portugueses.
Para terem direito a receber a comparticipação estatal, e conforme indicação da ANF, as farmácias têm de registar obrigatoriamente no Sifarma.Clínico, uma ferramenta de gestão específica, cada vacina dispensada no âmbito do programa. O que requer 23 passos. Ou seja, uma burocracia que acaba por representar uma enorme perda de tempo, consideram os farmacêuticos.
Como estipulado inicialmente, após a primeira receção destas vacinas, podiam ser feitos pedidos adicionais até ao máximo de 15 vacinas diárias, de acordo com a necessidade da farmácia para administração à população-alvo, estando a entrega sujeita à libertação das parcelas por parte da indústria farmacêutica.
Até ao presente, no contigente ao abrigo do programa Vacinação SNS local, foram dispensadas 186.439 vacinas.
CTT, Galp e Jerónimo Martins entre as empresas que vacinaram colaboradores
A par dos contigentes já mencionados, empresas como os CTT, a Galp, a Ageas, a Medis ou a Jerónimo Martins, entre outras, têm, há alguns anos, programas de vacinação dos seus colaboradores, sobretudo aqueles cuja exposição ao risco é mais elevada.
A Associação Nacional de Farmácias confirmou ao SAPO24 que "respondeu a solicitações de serviços públicos, serviços de atendimento ao público e cadeias logísticas vitais para os cidadãos que implementaram, há vários anos, programas próprios de vacinação dos seus colaboradores".
Segundo a ANF, "essas empresas faziam, muitas vezes, aquisições diretas aos fornecedores de vacinas e selecionavam locais de vacinação". Agora, a escolha da farmácia "é sempre livre por parte de cada beneficiário, o que evita deslocações e concentrações de pessoas, desnecessárias em tempo de pandemia".
No âmbito destes protocolos, "foram pedidas pelas farmácias 6.802 vacinas, e já foram vacinadas 4.386 pessoas", diz a ANF. "Os protocolos, por regra, não abrangem todos os colaboradores dos serviços, mas apenas os considerados prioritários pelos respetivos departamentos de Medicina no Trabalho. A administração de vacinas protocoladas depende sempre de receita médica, o que previne a sua administração sem indicação clínica", acrescenta.
Covid-19: 212 vacinas em ensaios
Apesar de continuarem a faltar vacinas contra a gripe - mais de 234 mil só às farmácias - e de a ministra da Saúde, Marta Temido, ter admitido que "não há mais vacinas no mercado mundial", ou talvez por isso, muitas pessoas tentam reservar já nas farmácias a vacina contra a Covid-19.
Existem neste momento, segundo dados da OMS, 164 vacinas em ensaios pré-clínicos e 48 vacinas em ensaios clínicos.
A Comissão Europeia tem liderado as negociações com os laboratórios da indústria farmacêutica. Atualmente, e de acordo com o Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, já existem cinco contratos assinados - com a AstraZeneca, a Sanofi-GSK, a Janssen, a CureVac e com a parceria BioNTech/Pfizer -, que garantem para já cerca de 1.400 milhões de vacinas para a União Europeia.
A maioria destes contratos tem como premissa uma distribuição equitativa pelos países da UE, conforme a população de cada país. Portugal receberá, assim, 2,3% das vacinas que forem contratadas nestas condições.
Outros contratos estão em negociação, como já foi comunicado, nomeadamente com o laboratório Moderna.
"Para que possa ser iniciada a sua distribuição", diz o Infarmed, "as vacinas terão ainda que passar pela necessária e rigorosa avaliação da Agência Europeia de Medicamentos. Neste momento, já se encontram em avaliação as vacinas dos laboratórios AstraZeneca, BioNTech/Pfizer e Moderna".
Mais, "as vacinas serão disponibilizadas gradualmente – em todos os países da União Europeia – e a sua administração será feita em consonância com os grupos populacionais definidos na Estratégia de Vacinação da DGS".
No dia 20 de Novembro o primeiro-ministro, António Costa, disse que "já temos, relativamente a três vacinas que foram contratadas, as doses definidas que vamos comprar - numa 6,9 milhões, noutra 4,6 milhões, noutra 4,5 milhões", o que dá 16 milhões de doses. Note-se que a maior parte das vacinas implica duas tomas (separadas por entre quatro a seis semanas), pelo que poderá chegar a oito milhões de pessoas.
Marta Temido veio dizer que espera que a vacina contra a Covid-19 esteja disponível em Portugal já em janeiro de 2021. Na semana passada, a ministra da Saúde avançou no podcast do PS "Política com Palavra" que foi criada uma equipa de trabalho para gerir o processo de receção e distribuição das vacinas. Mais uma vez, a população-alvo será "pessoas acima de uma certa idade, com morbilidades associadas, profissionais de saúde e de serviços essenciais e provavelmente de serviços sociais". Esta é a definição que "está a ser trabalhada pelos técnicos", disse.
A Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) é constituída por especialistas "de áreas do conhecimento que contribuem para o estudo e a aplicação das vacinas e da vacinação", explica a DGS. "Os peritos nomeados têm acompanhado a evolução dos conhecimentos sobre o vírus SARS Cov-2, sobre a clínica e epidemiologia da Covid-19 e sobre vacinas contra Covid-19 em desenvolvimento ou sobre a vacinação em geral".
Integram a CTVC 11 personalidades: Válter Fonseca (coordenador, Medicina Interna), José Monteiro Marques (pediatra), Diana Silva Costa (farmacêutica), Ema Paulino (farmacêutica), Luís Silva Graça (imunologista), Luísa Rocha Vaz (medicina geral e familiar), Maria de Fátima Ventura (farmacêutica), Maria de Lurdes Silva (enfermeira), Manuel do Carmo Gomes (epidemiologista), Raquel Moreira (virologista) e Teresa Alves Fernandes (bióloga).
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