Sofreu um Acidente Vascular Cerebral no dia 13 de Maio deste ano. A mãe, católica, achou a data providencial e tem a certeza que foi Nossa Senhora que salvou o filho. Manuel Sobrinho Simões, menos crente e mais habituado às coisas da ciência, acredita que, no mínimo, o AVC foi um tremendo azar.
Antes de começar a entrevista puxou para o pé de si um caderninho onde ao longo da conversa foi apontando todas as palavras que entaramelava: "Ma-re-si-a", "co-mu-ni-ca-ci-o-nal", "me-la-to-ni-na", repetia, sílaba a sílaba, enquanto as anotava a lápis. "Sabe, o meu neto diz que tenho de escrever as palavras que não consigo dizer para depois as repetir sílaba a sílaba em voz alta", explica com um sorriso, como quem faz questão de cumprir escrupulosamente a prescrição do médico.
O número de AVC está a aumentar em Portugal. Como a diabetes ou a obesidade. São os hábitos de vida; mudar é uma coisa "tramada". "Andamos nós a falar em inteligência artificial e cidades inteligentes quando os homens nem sequer puxam o autoclismo quando vão à casa de banho", ironiza.
Médico, professor e investigador no Ipatimup – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto, onde recebeu o SAPO24, Sobrinho Simões faz perto de 300 diagnósticos por ano só para fora do país. Numa entrevista de há quatro anos afirmou que "o governo tem uma doença psicológica e na sua área é incompetente, displicente e amador". Desta vez também fala dos sintomas de Portugal e dos portugueses, mas a conversa vai mais além. Se a destruição das instituições na área da saúde o irritava, agora piorou.
Viveu na Noruega e diz que é mais difícil definir os noruegueses que os portugueses. Eles são muito parecidos uns com os outros, enquanto nós somos individualistas e minifundiários, cada um com a sua folie de grandeur. Mas a miudagem é mais livre do que a do centro da Europa ou dos Estados Unidos, menos formatada. Ainda assim, estamos a ficar chatos. E, se calhar, ao fazer selecção genética para evitar que nasçam bebés com doenças graves, estamos a evitar que nasça um ser melhor que nós, um Homo Superior.
"As pessoas acreditam que as coisas se compõem por artes mágicas. E não, é preciso treinar, fazer exercícios"
Teve recentemente um AVC. Como está a recuperar?
Este caderninho é para escrever as palavras que não consigo articular bem e que depois repito em voz alta, sílaba a sílaba. É engraçado, porque as pessoas acreditam que as coisas se compõem por artes mágicas. E não, é preciso treinar, fazer exercícios. Vejo-me aflito a ler alto, que é uma coisa interessante. Pego no jornal Expresso ou no Público, por exemplo, e se estiver caladinho, zeque, zeque, zeque, é só passar as páginas, leio num instante. Mas se quiser ler em voz alta, além de demorar imenso tempo, dou erros e não compreendo, tenho de voltar atrás muitas vezes. É um exercício óptimo. O que acontece, é que ao ler para dentro ou em voz alta estou a utilizar funções diferentes; quando leio alto passo a ter atenção ao que estou a ler e deixo de prestar atenção à compreensão. Mas estas coisas dão trabalho e os portugueses sempre confundiram trabalho com emprego, Eça [de Queiroz] já falava nisso.
O trabalho dá trabalho?
Não temos a tradição do trabalho, do valor do trabalho e, como cada vez há menos, agora é ainda mais difícil. Não deixa de ter graça, porque a grande evolução foi a descoberta da agricultura, mas foi também essa evolução que nos desgraçou: começámos a ficar com uma cabeça grande, um cérebro grande, aconteceu a evolução cognitiva, descobrimos o trigo, a batata e o arroz, fizemos a domesticação e passámos a ter proteína, uma revolução extraordinária. Só que com comida a mais, sedentarismo a mais, tudo a mais, ficámos obesos, diabéticos e hipertensos.
"Os portugueses comem o dobro da carne que comem os espanhóis. Se não resolvemos o problema da obesidade e da diabetes, como vamos resolver o da inteligência artificial?"
Isso, dito dessa maneira, é uma espécie de tragicomédia...
Repare, os portugueses comem o dobro da carne que comem os espanhóis por habitante. E temos de começar a comer alimentos com menos sal. E não nos mexemos. Nas crianças é ainda pior. Se não resolvemos o problema da obesidade e da diabetes, como vamos resolver o da inteligência artificial? Veja bem, os nossos alunos – os que conheço melhor são os de Medicina - são bons nas palavras, têm cada vez mais acesso a palavras, a frase feitas, mas têm cada vez mais um problema de compreensão, porque há distância entre o que dizem e a prática. Acentuámos isso. A nossa sociedade, ao contrário das nórdicas, nunca foi uma sociedade de fazer, temos sempre alguém, uma espécie de escravos, entre aspas, para fazer por nós. E como temos acesso às tecnologias, aos telemóveis, toda a gente sabe tudo, e isto tira graça. Estamos a criar uma sociedade sem graça nenhuma. Não há tempo para nada, é tudo instantâneo. E não há competências, a menos que sejam também instantâneas.
Como era antes?
Nós achávamos graça a fazer perguntas, questionávamos. Hoje vão para casa, levam uma pergunta e já têm uma resposta formatada, não constroem. Não têm graça porque não têm uma narrativa – narrativa é uma palavra feia, sobretudo pela forma como é hoje utilizada, mas é isso. Nós contávamos uma história, uma sequência, elaborávamos a resposta. Estou reformado, já não dou aulas, mas hoje dei uma aula extraordinária e adorei. Estivemos a discutir coisas simples e tive aquele gosto de voltar a ter apenas sete alunos em vez de uma sala cheia com 300 pessoas a decorar tudo. Agora, também pode ser que esteja a ter uma visão do meu ocaso [risos].
Sente-se envelhecer?
Vai achar graça a isto: sou amigo do fotógrafo Alfredo Cunha. Fotografou-me algumas vezes e uma das fotografias, de 2003, até esteve exposta na Cordoaria Nacional de Lisboa ["Tempo depois do tempo. Fotografias de Alfredo Cunha 1970-2017"] no ano passado. Adorei a fotografia e gostei imenso de lá estar. Mais recentemente quis fazer-me umas fotografias para um livro e explicou que era capaz de fazer uma coisa tipo Mussolini, comigo a olhar para o infinito. O livro ["Retratos 1970-2018"] foi publicado este mês e, quer acreditar, quando vi a minha fotografia não me reconheci. Isto já me tinha acontecido quando me ouvia - muitas vezes não reconhecemos a nossa voz, a nossa percepção interna é diferente da exterior -, mas nunca me tinha acontecido com uma fotografia, ainda por cima com uma imagem de que gostei. E o mais engraçado é que os meus filhos e a minha mulher dizem que a fotografia está fantástica, sou eu tal e qual. Bem, serei, mas se sou já não me lembro. Sei que há pessoas que ao envelhecer ficam muito parecidas com o que eram, outras ficam muito gordas... Eu, além de gordo, fiquei diferente [risos]. Estava a folhear o livro, fui vendo aqueles que conheço muito bem e, quando chego a mim – faço pandã com o Sampaio da Nóvoa, que está igual –, surpreendi-me mesmo.
"Se eu fosse novo gostava de voltar a estudar"
Há, de facto, pessoas que envelhecem lindamente, como o professor Adriano Moreira.
Adriano Moreira, Eduardo Lourenço... Sabe que temos tido aqui umas sessões muito interessantes, "Conferências do Equinócio", é como se chamam. Começaram em 1997 e em 20 anos já passou por cá imensa gente. Ontem esteve António Guerreiro, a falar sobre equidade ["A Ficção Necessária da Equidade"]. Explicou que temos medo da igualdade e, por isso, encontrámos a palavra equidade, uma maneira de dar volta ao assunto. Foi brilhante. Nunca tinha pensado no assunto daquela maneira, como nunca tinha pensado no cuidado, no care, que vai muito além da vontade de ajudar os outros, vai para lá do apoio económico da Santa Casa da Misericórdia. Nunca tinha pensado que havia uma ética do care, do cuidar, e isso é um tanto humilhante. Falou na equidade como uma ficção necessária e foi mais longe, afirmou que existe um problema de igualdade, que é contra a liberdade, e resolvemos a equação criando a palavra equidade, uma solução engenhosa. Se eu fosse novo gostava de voltar a estudar.
O que estudaria?
Ciência, seguramente. Mas a cabeça, que é o que interessa. Porque sei muito de biologia, mas do resto, zero. Quer dizer, o que sei eu do cuidar, da amizade? Não falo das emoções, isso é muito animal, mas quando passa da emoção para o sentimento... E depois a consciência, a consciência de si, o sociocultural, aquilo que em mim é meu e o que é tribal. E não é genes, genes não é nada, só interessa no caso das doenças muito graves, da fisionomia. E o resto? O resto é tribal e pessoal. Como é que se adquire? Se fosse hoje era isso que ia estudar, o desenvolvimento, mas, sobretudo, a cabeça. Já viu a evolução extraordinária que fizemos?! O neandertal tinha um cérebro maior, era mais forte, mas não era esperto como nós, os sapiens, tão bons que começámos a nascer prematuros, desenvolvemos estratégias. Não sou crente, mas acredito que fomos seleccionados porque nos saímos melhor do que a encomenda. Mas agora as coisas tomaram uma proporção do arco-da-velha e estamos a dar cabo de tudo. O que me está a chatear muito é o seguinte: é óbvio que há o problema das alterações climáticas, da biodiversidade, da pobreza... Mas comecei a preocupar-me cada vez mais com as pequenas coisas.
"As crianças têm hoje um problema comunicacional gravíssimo por causa do excesso de comunicações"
Por exemplo?
Por exemplo, as crianças têm hoje um problema comunicacional gravíssimo. O que é que estamos a fazer às nossas crianças com o excesso de comunicações, o que é que lhes está a acontecer? A poluição luminosa; tem consciência de que Portugal compara hoje com áreas como Chicago ou com cidades do Extremo Oriente em termos de poluição luminosa, quantidade de luz? Isto é assustador.
Quem faz estas medições?
São centros de controlo. Recebemos cá um especialista que veio fazer um trabalho específico e ficámos interessados no assunto – um grupo de miúdos descobriu que a orientação das gaivotas baixou 5% e começou a acompanhar e estudar o assunto, com a noção que do ponto de vista biológico isto é muito importante. A melatonina [hormona que ajuda a regular os ritmos biológicos] faz com que tenha mais ou menos resistência. Este especialista fez uma coisa, que foi colocar seis plantas iguais sujeitas a luzes diferentes durante um período de 15 dias e analisar o seu desenvolvimento.
"Os nossos miúdos não brincam na rua porque se sujam. Com consequências gravíssimas de alergias, porque se não brincam na terra, vão ficando com menos resistências"
Uma experiência que todas as crianças faziam na escola com feijoeiros...
Uma coisa tão simples e que fazíamos em crianças: acendíamos a luz, mudávamos os vasos de lugar, a terra... Mexíamos com as mãos, coisa que os miúdos deixaram de fazer. Voltamos ao mesmo: estamos a criar uma sociedade com menos graça. Não temos tempo para nada. E temos outro problema terrível: os nossos miúdos não brincam na rua porque se sujam. Com consequências gravíssimas de alergias, porque se não brincam na terra, não brincam lá fora, vão ficando com menos imunidade, menos resistências. Quando fui viver para a Noruega os meus filhos tinham 5, 4 e 2 anos, a Joana ainda ficava em casa, mas os dois mais velhos iam para a escola francesa, e todos os dias iam brincar para a rua, nunca ficavam dentro do colégio, andavam de anorak, sujavam-se, brincavam lá fora.
"Começamos a ter muitas queixas de desenvolvimento - recentemente foi divulgada uma prova que mostrava que um terço das crianças não sabe saltar à corda"
Tudo isso conta como aprendizagem.
Tudo isto conta como aprendizagem, mas hoje os professores têm medo e os pais também têm medo. E há os que estão sempre à espera dos perigos: "Ai se o miúdo um dia escorrega e bate com a cabeça"... Começamos a ter muitas queixas de desenvolvimento - recentemente foi divulgada uma prova que mostrava que um terço das crianças não sabe saltar à corda [resultados das provas de aferição de 2017 do Instituto de Avaliação Educativa]. Aprender a estratégia para saltar à corda é mais importante do que saber trabalhar com telemóvel e vai ser utilizada ao longo da vida, é fundamental. Fomos sempre, mas estamos a ficar cada vez mais sedentários, e se fossemos precocemente treinados para fazer exercícios, coisas pequenas, além de ganharmos equilíbrio, ganharíamos estrutura mental, estratégias de desenvolvimento, motricidade e criatividade. É o corpo todo, incluindo a carola.
"Se tivesse de identificar aquilo que mais lamento no envelhecimento, seria a perda da capacidade de apreender"
A tal, que gostaria de estudar...
Uma das coisas de que tenho mais pena é de não ter a mesma capacidade de aprender à medida que a idade avança. Gostava de aprender com a mesma facilidade. Se tivesse de identificar aquilo que mais lamento no envelhecimento, seria isso. Claro, o sofrimento, uma doença grave, tudo isso é terrível, mas, em condições normais, o que mais lamento é esta perda da capacidade de apreender. Porque há imenso para aprender, ainda hoje aprendi com os meus alunos. Mas é engraçado como na sociedade portuguesa perdemos muito a curiosidade. Há coisas com piada... Eu não era um miúdo activo, jogava futebol, mas porque era bruto e porque gostava de ganhar, embora não tivesse habilidade nenhuma. Ficava sempre no banco de suplentes, só entrava quando faltava alguém [risos]. Lembro-me de algumas histórias, era um desastre. Era muito competitivo, mas do que gostava mesmo era de ler, lia muito. Passava três ou quatro meses em Arouca e era o que fazia. Hoje continuo a dizer que aprendi mais de psicologia, de psiquiatria e de medicina, no sentido da relação humana, nos romances do que nos livros técnicos ou nos livros ingleses com histórias estereotipadas.
"Com a idade muitas pessoas, mesmo com cancros, não vão morrer disso, e têm de ser enquadradas numa lógica de acompanhamento, muito mais do que de intervenção"
A esperança de vida está a aumentar. A qualidade de vida também?
Há aqui várias questões. A primeira, e ando com esta mania, é que temos de ter muito cuidado, porque com pessoas mais velhinhas, 70, 80, 90, 100, 110 anos, temos a certeza de que vão aparecer imensos pequenos cancros. E continuamos a utilizar a palavra cancro, embora seja preciso entender que existem dois universos totalmente distintos: há os cancros agressivos, e devem ser tratados de forma muito eficiente e tão precoce quanto possível, e uma quantidade de novos casos, que são cancros pouquíssimo importantes. Usa-se a mesma palavra para situações que são perigosíssimas ou perigosas e para situações sem importância, isto é um erro e é como confundir um doente agudo com um doente crónico. Tenho quase a certeza de que com a idade muitas pessoas, muitos corpos, vão apresentar sinais que caem dentro das doenças pouco graves. Essas pessoas não são verdadeiramente doentes, são velhinhos que, mesmo quando têm cancros, têm cancros pequeninos, não vão morrer disso, e têm de ser enquadrados numa lógica de acompanhamento muito mais do que de intervenção.
E como é que se distingue um do outro?
A primeira coisa é ter bom senso. Antigamente as pessoas morriam aos 50, 60, 70 anos, fundamentalmente de uma ou duas causas. Hoje, praticamente ninguém morre de enfarte do miocárdio ou mesmo de AVC, as pessoas morrem de falência do sistema, infecções. Quando estas pessoas chegam aos 100 anos estão cheias de pequeninas alterações que têm a ver com a morbilidade, como o peso, a obesidade, a hipertensão, alguma alergia, eventual insuficiência cardíaca, e não podem ser tratadas por especialistas, porque são um compêndio. Aliás, uma coisa que aprendi é que badameco vem daí, vade mecum. Aparece em Coimbra, os compêndios que os médicos e estudantes levavam com eles, vade mecum, à letra, vai comigo, e que deu origem ao badameco. Isto para dizer que há uma parte que tem de ser feita por uma medicina que não tem nada a ver com a medicina curativa, aquela do especialista extraordinário que salva uma vida.
"Temos de ter uma estrutura de centros de referência para situações agudas e para tratamentos cirúrgicos, onde estão os especialistas"
No entanto, o sistema tem de estar preparado também para essas pessoas. Como?
Temos de ter uma estrutura de centros de referência para situações agudas e para tratamentos cirúrgicos, onde estão os especialistas, os médicos muito bons naquela doença, porque muito habituados ao tipo de intervenção específica. O que existe hoje, e isto é horrível, é que há dezenas de centros de referência em Portugal para estudar e tratar o cancro do intestino, por exemplo. E nós agradecemos. Ora, não pode ser, tem de se diminuir, mas nós temos a mania que somos latifundiários.
"Em fase de paliativos a pessoa tem de ser encaminhada para locais que não têm nada a ver com hospitais, tampouco com medicina, mas com assistência social"
Sim, mas para os centros de referência devem ir os casos graves. Eu falava dos tais pacientes que são um "compêndio" de pequenas doenças...
O senhor Simões não é para ir para nenhum desses centros de referência, é para ir para um dos centros da rede de medicina geral e familiar e, é indiscutível, muitas destas pessoas podem ser vistas no domicílio, onde é feita a verificação da tensão arterial, da glicose e por aí fora. Não temos alternativa. Quando a pessoa está muito doente e em fase de paliativos tem de ser encaminhada para locais que não têm nada a ver com os hospitais, tampouco com medicina, mas com assistência social. Porque, cada vez mais, vamos assistir a uma perda gradual de capacidade, e as pessoas têm progressivamente de deixar de ser consideradas doentes, no sentido habitual da palavra, para passar a ser pessoas muito idosas, com alterações associadas à velhice. Por isso insisto em que têm de estar inicialmente em estruturas como centros ambulatórios e não em hospitais. Mas também não podem entrar com o rótulo dos paliativos, por isso temos de introduzir na equação a Segurança Social. Não é medicina nem enfermagem. E há outra coisa: sou a favor de substituir progressivamente muitos actos médicos por outros profissionais, como enfermeiros ou técnicos.
Os médicos não querem isso. Porquê?
Porque têm medo, é a corporação a falar. Um disparate. Há muitos actos que os enfermeiros, que em Portugal são excelentes, fazem muito melhor que os médicos. Para seguir uma grávida, para seguir um hipertenso, não é preciso um médico, pelo amor de Deus. E tudo isto representa um consumo incrível.
Sobre os centros de saúde: faz sentido insistir na figura do médico de família numa altura em que a mobilidade, as comunicações e a estrutura familiar mudaram tanto? A informação do paciente pode estar centralizada e disponível, as pessoas mudam de casa com regularidade...
E, sobretudo, porque o médico de família não está a funcionar bem. Por dois motivos: logo à partida porque não faz sentido fazer um exame e depois, se vou ao hospital, ter de repetir tudo. Além do gasto que representa, esteja o paciente onde estiver, em Lisboa ou em Londres, o médico que o vê devia ter acesso aos exames, não tem de mandar repetir a radiografia ou as análises. Não podemos continuar a repetir exames ad nauseam e este é um problema de funcionamento. O segundo é que os médicos deviam ter mais tempo para falar com cada paciente, mas como têm muitas tarefas burocráticas, em vez de o fazerem estão a preencher fichas. E depois, volto a dizer, muitos actos médicos podiam ser substituídos por enfermeiros e técnicos, com vantagens para todos. Continuo a acreditar que devíamos evoluir para equipas multidisciplinares - não tenho dúvida de que tem de haver um responsável médico -, mas muito pode ser feito por enfermeiros. O nível de enfermagem é excepcional em Portugal, não sei por quanto mais tempo se irá manter, porque também está a piorar.
"Nisto dos exames há uma coisa que me chateia: há muita gente que faz dinheiro pela repetição. Em Portugal, infelizmente, há uma tradição de repetir exames também porque isso dá vantagem à indústria, aos profissionais e porque o doente quer"
Também se fala nas consultas à distância.
As consultas à distância têm imensas vantagens. Na oncologia, por exemplo, fazemos consultas à distância. Comecei em Oslo, quando se começou a fazer o diagnóstico durante o acto cirúrgico, que era feito a norte, em Tromso. Isto foi em 1980, há 38 anos, e já se fazia patologia à distância. Nisto dos exames há uma coisa que me chateia: há muita gente que faz dinheiro pela repetição. Em Portugal, infelizmente, há uma tradição de repetir exames também porque isso dá vantagem à indústria, aos profissionais, e porque, muitas vezes, o doente quer. Repare que Portugal tem, depois da Grécia, o maior número de aparelhos de TAC por habitante na Europa. E temos muitos aparelhos de TAC porque adoramos fazer TAC; médicos e doentes, toda a gente. Toda a gente vive de repetir. Somos um país de contradições.
"É importante que se criem mecanismos para que não seja necessário repetir exames, para haver uma continuidade na avaliação do paciente e no tratamento"
Qual é a contradição, neste caso?
A primeira contradição é que a TAC tem uma radiação com consequências chatas, não sabemos a sua extensão, mas sabemos que as radiações são nocivas. Nunca resolvermos isto, porquê? Porque quando uma pessoa vem de uma clínica privada, de um centro de saúde ou de um hospital o doente não se faz acompanhar de um dossier. Esta informação devia estar toda centralizada e o médico devia ter acesso a ela – com a devida reserva de privacidade, não posso ter acesso aos dados de um paciente só porque sim. É importante que se criem mecanismos para que não seja necessário repetir exames, para haver uma continuidade na avaliação do paciente e no tratamento. É isto que se faz em todos os países civilizados. Temos aqui um problema. Depois há outro problema: temos em Portugal pouca tradição de uma segunda opinião. O que é engraçado, saltando nós com tanta facilidade de médico em médico, ou porque um amigo nos disse ou porque uma vizinha recomendou. Mas não o fazemos com uma lógica de responsabilidade, uma vez mais, nem doente nem médico, é sempre uma coisa do disse que disse. Quando há uma segunda opinião, ela tem de ser por escrito.
Os médicos não gostam disso...
E os doentes também não, mas gostam de pedir uma segunda opinião à socapa. E isso é perigosíssimo. No meio sabemos isto e os médicos deviam ter capacidade de encaixe e, pela positiva, estimular as segundas opiniões. No Ipatimup, e era assim quando eu trabalhava no Hospital de São João ou na faculdade, os estrangeiros que nos visitam e auditam gostam que tenhamos entre 5% e 10% dos nossos casos mandados diagnosticar fora. Isto é natural nos países anglo-saxónicos, não nos países mediterrânicos, porque nós sabemos tudo. Eu recuso isto, sempre fiquei orgulhoso por mandar 5% dos meus casos para fora, da mesma forma que fico orgulhoso por fazer entre 200 e 300 diagnósticos para fora do país. Somos bons a avaliar aspectos materiais, como um automóvel, um electrodoméstico, mas maus quando vamos para domínios imateriais, como a educação, a saúde ou a justiça. Aí não temos treino. Somos muito quantitativos, pseudo objectivos e isto não funciona. Veja que antes não se davam antibióticos às crianças, depois, progressivamente, começou a dar-se e agora todos são empurrados para o fazer de forma exagerada e disparatada. E, na dúvida, se um médico não prescreve, haverá outro que o fará. Isto resulta em que temos tido uma evolução no sentido do sobretratamento.
Outra contradição.
Sim, e é muito típico da nossa cultura: por um lado, não somos bons no diagnóstico precoce, não fazemos rastreio, não sabemos prever. Por outro, quando acontece qualquer coisinha, mesmo sem importância, fazemos disso uma tragédia, de tal forma que a coisinha se transforma numa catástrofe. E nem se pode dizer que seja um sobrediagnóstico. Vou dar um exemplo: se eu tiver um cancro muito pequenino na tireóide ou no pulmão ou na mama ou na próstata e se meter lá uma agulha, já estou a mexer. O meu diagnóstico está certo, não disse mal, é um micro carcinoma. Mas como falei em cancro, apesar de ter dito que não ia dar chatices e que não deve ser sobretratado, aquilo entra numa mutilação: radioterapia, quimioterapia, uma espiral de tratamentos. Como disse, o diagnóstico estava certo, mas tinha de ser afinado. E isto coexiste numa sociedade em que os homens continuam a ir à casa de banho e a não puxar o autoclismo, basicamente. Voltando às crianças: quando se brinca ao ar livre, quando se faz coisas com as mãos também se aprende a noção da realidade, o bom senso. E nós, na saúde, temos de ter mais bom senso.
"Nos Estados Unidos gasta-se tanto em saúde nos dois últimos meses ou mesmo no último mês de vida como ao longo da vida inteira"
Há um cúmulo para essa falta de senso?
Não sei se tem consciência disto, e nós já sabíamos que as pessoas gastavam em saúde no último ano de vida tanto como ao longo de toda a sua vida em sociedades como a norte-americana, onde se fazem tratamentos estúpidos e caríssimos para evitar que as pessoas morram ou para lhes dar mais um mês de vida, mas agora os números mostram que nos Estados Unidos gasta-se tanto em saúde nos dois últimos meses ou mesmo no último mês de vida como ao longo da vida inteira. Isto é assustador.
Existem esses dados para Portugal?
Não. Tem-se sempre uma vaga ideia, mas ninguém sabe ao certo. Mas isto não é sustentável. Um médico numa privada americana recebe uma percentagem da receita e por isso vai tratar um doente com um medicamento que, sabemos, tem uma probabilidade mínima de resolver o que quer que seja. Mas vai escolher o mais caro. A morte é a última fronteira e, com esta justificação, vale tudo. Fica caríssimo, tem custos brutais para a pessoa, para as famílias, mas quem é que tem a coragem de dizer não, de combater esta prática? Há sempre alguém disposto a tentar. Por isso, voltando aos corpos, é muito mais uma questão de qualidade do que de quantidade. Uma vez perguntaram a um grande empresário como é que ele media o sucesso e ele respondeu qualquer coisa do género: não sei, mas não acreditem que se mede em quantidade material, só se for em bondade, generosidade. Quando deixamos de formar miúdos e quando os velhos ficam doentes resta muito pouca coisa, e a saúde é, talvez, a última. Como vamos fazer quando for preciso dar apoio aos velhos, qual será o enquadramento? Eu não sei, sei que deve ser em casa. A minha grande aspiração é morrer em casa.
Morre-se muito de velhice nos hospitais?
Há muitos velhos a morrer nos hospitais. Lembro-me de que quando era miúdo morria-se em casa. Eu vivia no Bombarral e recordo-me de ver morrer em casa do meus avós a senhora que era a governanta da casa e de assistir à extrema-unção, a senhora deitada na cama, eu pequenino, à altura dos pezinhos dela, o padre... Morria-se em casa. Hoje não sei se se pode morrer em casa, se calhar as pessoas não têm espaço para isso. Portugal sempre foi um país muito assimétrico, mas existia apoio para as pessoas de idade, que nunca chegavam a ficar dementes, morria-se antes. Naquele tempo os velhinhos eram os avós e os bisavós e vivia-se em casas grandes, agora as casas são pequenas, talvez.
E o caixão era carregado pelos familiares e amigos, agora é despachado pelas funerárias...
Agora morre-se nos hospitais. Um dos meus filhos faz urgências à noite em Medicina Interna e é assustador porque quando alguém morre é preciso dizer às famílias, e há sempre um sentimento de surpresa. O que não é exactamente verdade, porque às vezes a pessoa já está muito mal. No entanto, depois do nascimento, a morte continua a ser a maior surpresa de todas. E temos de encontrar uma fórmula para que isto se passe com dignidade, e para os nossos filhos, para os nossos netos.
Falou em demência. Viveu na Noruega, um país que julgamos tão assertivo nestas matérias e que agora começa a revelar problemas...
A Noruega está com dois problemas sérios: um de toxicodependência, que estava controlada e agora não está, e outro das pessoas de muita idade, com saúde e condição física, mas demenciadas e isoladas. O sistema deixou de ter uma rede de apoio. E, seja por razões afectivas, económicas ou tradição, a realidade é que o apoio familiar cá é muito superior ao que vejo na Noruega, onde os tais velhinhos estão muito isolados e também os pais não ficaram a viver com os filhos. Cá, por exemplo, os filhos saem de casa mais tarde. Mas, mais uma vez, tudo isto coexiste com a inteligência artificial, o que é extraordinário.
Vi-o no programa "2077 – 10 Segundos para o Futuro", que passou na RTP1. A tecnologia permite avanços extraordinários.
A inteligência artificial permite, por exemplo, que uma pessoa, em casa, à distância, possa saber como está a sua tensão arterial, se está com fibrilação, se tem glicose... Isto é do melhor que pode haver. No que não acredito – e falava-se disto no programa – é naquela aldrabice de a pessoa tocar numa tecla e ouvir a pergunta: "Olá, como estás hoje?" Depois, encosta-se à parede e recebe um diagnóstico completo. Quer dizer, parece-me assustador, e já estou como o outro, que era bom a fazer diagnósticos, mas a fazer autópsias então era o melhor do mundo, tinha sempre razão. O que se espera hoje é que eu faça um diagnóstico precoce, que preveja o que vai acontecer, e isto é perigosíssimo.
Porquê?
Porque como somos todos malucos e temos a mania das doenças e dos diagnósticos antecipados, começamos a tratar as pessoas antecipadamente. Agora veja, se já temos tendência para fazer sobretratamento, imagine se começamos a fazer sobretratamento ainda antes de a pessoa ter a doença. E se nos enganamos, se o diagnóstico não foi bem feito? Não se pode voltar atrás. É mutilante. Muitos sinais que conseguimos ver hoje devem-se à informação fina. O perigo é sempre o mesmo: podemos ter sensitividade tão excessiva que temos falsos positivos. "Ah, tem sangue". E pronto. Porque na medicina, e sobretudo na patologia, há esta coisa dos nomes. Agora temos medo de fazer diagnósticos, na psiquiatria por maioria de razão; um porque tem Alzheimer, outro porque tem Parkinson, quando há muitas situações em que não temos bem a certeza e devemos evitar que a pessoa seja confrontada com um nome, porque a partir daí é inexorável. Esse é um ponto. Nos casos que não são de psiquiatria, que são mais orgânicos, também é preciso ter muito cuidado; em vez de dizer se é maligno ou benigno, hoje dizemos que o risco é elevado ou reduzido. É uma ideia muito inteligente, que não é dicotómica, mas as pessoas não querem isso.
As pessoas precisam de um rótulo, um sítio onde se encaixem, é isso?
Exactamente. E isso vai mudar tudo. É verdade que cada vez mais vamos fazer diagnósticos precoces, e ainda bem, mas não podemos exagerar. Precisamos de saber se a pessoa vem de uma família que tem certa doença, caso em que deve ser seguida com atenção a determinados sintomas para os quais devemos estar alerta. Mas não se pode extrapolar para toda a gente. Isto é compreensão, e cada vez há menos tempo para isso. Vivemos num tormento porque não sabemos viver de outra maneira, e temos esta noção terrível de estar atrás de uma coisa que nos dê segurança, mas que passa sempre pelo excesso: falsos positivos, nomes e por aí fora. Em Portugal misturam-se estes dois mundos e temos dois problemas distintos: o da muita gente com pouca literacia, e que tem de fazer rastreio do cancro da mama e outros – mesmo assim está a melhorar muito -, e o extremo oposto, as chamadas classes médias altas, que passam a vida a fazer raios X porque fumavam e têm medo do cancro do pulmão – sem pensar que a radiação tem contra-indicações óbvias. E quando encontrarem um micro cancro é preciso decidir se vale ou não a pena mexer. A compreensão e a atitude não é do domínio cognitivo puro, é muito mais cultural.
Disse-me em tempos que o cancro é uma doença menos hereditária do que as pessoas julgam. A hereditariedade conta 5%, 95% é comportamento puro e duro. Temos estado a falar de hábitos: menos tabaco, muito sal, muita carne, pouco exercício. E o álcool e outros consumos?
Está a aumentar. Mas é preciso ter muito cuidado com esta afirmação, porque temos vindo a baixar o limiar para chamar a atenção para o risco. O tabaco é péssimo em qualquer circunstância, enquanto o sal, o açúcar ou o álcool não eram considerados per se uma coisa má. Até há pouco dizíamos que se podia beber dois copos de vinho, depois baixámos para um e, parte desta ideia de que estamos a comer e a beber mais, resulta de termos baixado os limiares do consumo (fazendo aumentar artificialmente as quantidades consumidas). Depois, temos outro problema: na toxicodependência não sabemos o que é mistura, como em doenças como a hepatite C, em que sabemos os que tomam a vacina, mas ninguém sabe quantos doentes estão infectados. Depois, insisto na obesidade, muito mais grave nas crianças, e no excesso do consumo de açúcar.
Vemos pais a dar bolas de berlim com creme e leite com chocolate a crianças gordíssimas...
São mecanismos de compensação afectiva. E os pais não fazem por mal, é por iliteracia. E nas escolas deviam proibir, há muitas coisas que podiam ser feitas. Hoje existe a medicina escolar; os miúdos são pesados, medidos, faz-se uma série de exercícios para explicar às crianças que estão a entrar num caminho terrível. Se reparar, muitas vezes os pais dessas crianças mais gordinhas também são gordos e, palavra de honra, não é uma questão genética, é uma questão cultural. Não se esqueça de que fomos seleccionados e os outros não, somos para aguentar tudo. Depois, é verdade que quando estou nervoso o que quero é uma gulodice, não é saladas e sementes. Há lá coisa melhor do que um croissant ou uma taça de vinho branco, no final do dia, para descontrair. E isto é antropológico, é preciso perceber isso – temos muitas moléculas e receptores que, ligando-se, são os nossos comandos, mas tem consequências nefastas. Quando gostamos de chocolate, não é uma tara. Se o porco encontra os cogumelos, é porque o porco os cheira e têm hormonas masculinas. As plantas são iguais a nós do ponto de vista base, temos de perceber isto, porque, por muito engraçado que pareça, e por muita mania que tenhamos de que o mundo animal é uma coisa e as plantas são outra, não é verdade. E lá voltamos à descoberta do trigo, da batata, do arroz. E começamos também a ter ideias de que o rato e o cão, afinal, têm muitas coisas próximas do ser humano, não são só os gorilas. Ninguém sabe como é que rebentámos com os outros. E há outra coisa em que me parece que as pessoas não pensam muito, mas nós poderíamos evoluir.
"Podia aparecer um ser melhor do que o Homo Sapiens. Todos os anos aparecem alterações genéticas e cromossómicas, a maior parte delas podem até ser equilibradas, mas, na dúvida, há interrupção. Se deixássemos que a coisa acontecesse, poderíamos vir a criar um Homo Superior"
A continuação da evolução da espécie.
Só saberíamos isso se deixássemos que houvesse rearranjos. Como fazemos o diagnóstico pré-natal, estamos a impedir essa possibilidade, porque podia aparecer um ser melhor do que o Homo Sapiens. Todos os anos aparecem alterações genéticas e cromossómicas, a maior parte delas podem até ser equilibradas, mas, na dúvida, há interrupção. Se deixássemos que a coisa acontecesse e tivéssemos uma criança, um rapaz e uma rapariga, poderíamos vir a criar um Homo Superior. Nós acabámos aqui porque somos bons, mas podemos estar a acabar com um melhor do que nós e que viesse a acabar connosco. E esta é a lógica e é isso que faz com que as doenças continuem a ser tão activas, não são corpos terminais.
A selecção eugénica, que acontece porque se considera que existe um risco, é certa?
É muito boa em relação às doenças muito graves.
E quando falamos de Trissomia 21 ou outro tipo de alterações?
Não sei. É que é isso mesmo: quem decide isso? Consigo pensar isso com a minha mulher, mas decidir pelo geral, criar uma lei? Isso é de uma complexidade enorme, precisaria de saber mais. Porque sou bom no cancro, que não tem graça nenhuma, é uma coisa biológica. Agora, na ternura, na beleza, como é que a aprendemos? Isto já não é Darwin.
Falou em alguns problemas da medicina e da saúde. Qual é, para si, o principal problema da medicina hoje em dia?
O pior problema da medicina em Portugal, e também é verdade para a enfermagem, é que eram áreas muito boas, com uma boa escola, e em que havia a ideia de que éramos capazes de perpetuar as coisas pela positiva. Isto é, as pessoas eram recompensadas porque ensinavam e com o que aprendiam podiam ganhar melhor e tinham prestígio. Era um sistema bondoso. Isto foi destruído. Nesta altura, para formar médicos e técnicos devia haver apenas dez ou doze centros de referência com grande concentração de situações raras ou difíceis onde se fizessem as grandes cirurgias. Acontece que todos os anos estamos a perder pessoas treinadas em oncologia patológica, por exemplo, porque não temos abertura de concursos. Perdem-se porque as vagas que existem não são em hospitais onde possam exercer. Isto não faz sentido e é verdade para muitas especialidades. Não estamos a ter a noção de que podíamos ganhar capacidade ao seleccionar as pessoas pela qualidade e não pela distribuição feita segundo as pressões de cada hospital. Um médico não pode ir para Castelo Branco só para fazer número se não vai resolver um problema do país. Há também uma tendência em Portugal para a organização em minifúndio: toda a gente gosta de ter o seu hospital e o seu centro de referência e os seus autarcas fazem questão disso. Nisso os partidos são exímios, cada um com a suas especialidades e as suas práticas. Para mim é como as segundas opiniões, é preciso ir aos sítios fazer diagnósticos, saber as chatices, avaliar a qualidade. Não interessa saber os meios – nós em Portugal temos a mania –, o que conta é o output, os resultados. E para isso vai lá um senhor de dez em dez ou de quinze em quinze dias e "tira uma fotografia". Precisamos de ter uma avaliação independente de resultados, com muito cuidado para que sejam comparáveis, claro, mas isso não é difícil.
"Este ano cerca de 300 alunos não entraram, ficaram tarefeiros e estão a ganhar cinco ou seis euros à hora"
Actualmente há quase tantos médicos a ensinar como a aprender e ainda têm de trabalhar. A formação está comprometida?
É preciso recompensar o mérito, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista do prestígio. E seria muito importante reservar 20% ou 30% do tempo dos médicos hospitalares para fazer investigação clínica e ensino, isto é assim em todo o mundo, tem de haver um tempo protegido nos hospitais que têm ensino – os hospitais universitários – para dar formação às gerações mais novas. E isso acabou, é assustador. O que vai acontecer daqui a 15 anos? Estamos mal pagos e os médicos que não conseguem entrar para os internatos vão para o sector privado - e temos médicos que são importados e são bons, não são piores do que os nossos, vêm de Espanha ou da República Checa. Mas este ano cerca de 300 alunos não entraram, ficaram como médicos indiferenciados, ou seja, são tarefeiros e estão a ganhar cinco ou seis euros à hora. Isto significa que quando for a uma urgência, se tiver de lá ir, e apanhar um desses miúdos, a maior parte deles não só não é competente por aí além, como sobretudo nunca mais vai aprender mais nada. E isto é no público e no privado. No privado é pior, por isso o bastonário da Ordem dos Médicos decidiu visitar as urgências do privado, começou a receber queixas. O nosso problema principal é da escola e da recompensa pelo prestígio, por pertencer a uma cadeia onde se aprende e ensina, aprende e ensina.
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