“Nós não vamos deixar o legado de Azagaia morrer por causa de um olho. (…) Não. Nós continuaremos a lutar e nós seremos aquela voz que vai ecoar independentemente de qualquer coisa”, explica à Lusa Inocêncio Manhique, a partir da avenida Ahmed Sekou Touré, no mesmo ponto em que, há precisamente um ano, perdeu o olho esquerdo, após ser atingido na face por uma bala de borracha disparada pela Polícia da República de Moçambique (PRM), enquanto homenageava o “rapper do povo”.
Na manhã de 18 de março, um sábado, agentes da polícia moçambicana alegaram ter “ordens superiores”, nunca esclarecidas, para dispersar grupos que pretendiam realizar marchas pacíficas, anunciadas às autoridades municipais, em vários pontos do país em homenagem ao ‘rapper’ de intervenção social Azagaia, que morreu por doença uma semana antes.
A repressão policial, que ocorreu sobretudo em Maputo, deixou detidos e vários feridos, tendo posteriormente os organizadores das marchas submetido recursos às autoridades nacionais e estrangeiras para responsabilização face ao que classificam como força desproporcionada exercida por aquela corporação.
“Estávamos de joelhos, com as mãos levantadas para cima e isso já dá o sinal de que não há violência nenhuma. Mesmo antes disso, não havia violência nenhuma. (…) Mas eles não levaram isso em conta. (…) E foi nesse momento em que eu estava em frente a todas as pessoas que vi o agente a meter a bala de borracha na arma e a atirar diretamente contra mim”, lembra à Lusa Marcos Amélia, de 29 anos, a partir do mesmo ponto onde também perdeu o olho esquerdo em 18 de março na Avenida Filipe Samuel Magaia, no coração da capital moçambicana.
Passou um ano após os episódios, mas Marcos e Inocêncio admitem que o “sentido de injustiça” prevalece, já que as autoridades não se responsabilizaram por qualquer dano, nem mesmo a assistência hospitalar, custeada por organizações não-governamentais e pessoas de boa vontade.
“As pessoas julgam-me sem sequer ouvir a minha história”
O pior são as dores de que ambos se queixam na cabeça, além das marcas de uma “injustiça” que vão carregar por toda vida.
“Eu uso óculos para esconder, mas não tenho como realmente esconder isso”, refere Marcos Amélia, que agora está desempregado e queixa-se de dificuldades para se inserir no mercado com a aparência que agora possui.
“As pessoas julgam-me sem sequer ouvir a minha história”, lamenta o jovem.
Hoje, ambos sem o olho esquerdo, Marcos e Inocêncio querem dar a cara na luta pelas liberdades em Moçambique, com a designada “geração 18 de março”, um termo adotado após os episódios para designar o grupo de jovens moçambicanos que esteve na marcha. E, inspirando-se nas propostas do próprio Azagaia, quer lutar por aquilo que consideram ”justiça social”, num contexto de “liberdades ameaçadas” em Moçambique.
“Edson [Azagaia] deu à luz à geração 18 de março e, independentemente do que venha a acontecer, nós estaremos em todo que for marcha para mudança de consciência porque o povo precisa. Nós somos povo no poder”, atirou Inocêncio, que, além de ativista, agora é político na assembleia municipal da capital por um partido de oposição.
“O que está em causa aqui atravessa a questão de simples liberdade de expressão. É uma questão de liberdades, no seu todo”, declarou Marcos Amélia.
Os episódios de 18 março mereceram a condenação de várias entidades que alertaram para a violência policial injustificada face a grupos pacíficos e desarmados, classificando-os como um dos sinais mais visíveis das limitações à liberdade de expressão e de manifestação em Moçambique.
O Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, anunciou, na altura, averiguações à ação policial nas marchas, considerando, no entanto, que as autoridades tinham informações de que existiam “infiltrados” que queriam atingir “outros intentos” com a homenagem ao ‘rapper’ Azagaia, lamentando os distúrbios ocorridos.
Na informação anual sobre o estado da Justiça no país naquele mesmo ano, a procuradora-geral da República, Beatriz Buchili, afirmou que o Ministério Público abriu processos-crime contra agentes envolvidos nos confrontos de 18 de março, mas desde então não se conheceram mais desenvolvimentos.
Marcos e Inocêncio apresentaram, em junho daquele ano, uma participação criminal na Procuradoria da República, exigindo a responsabilização da polícia e uma indemnização de cinco milhões de euros cada, mas até hoje não obtiveram qualquer resposta sobre o desfecho do caso.
“Não registamos qualquer avanço substancial. É verdade que a procuradoria da cidade chamou especificamente o Inocêncio para duas audições, em que numa delas o Inocêncio disse que depois reconheceu o agente que efetuou o disparo. Deu à procuradoria detalhes sobre a pessoa. Mas na prática, mais nada aconteceu”, disse à Lusa Elvino Dias, advogado das vítimas.
Azagaia, que ficou célebre pela crítica aberta à governação, foi encontrado morto em casa em 09 de março, após uma crise de epilepsia, segundo a família, consternando milhares de fãs, sobretudo jovens, em Moçambique e em toda a lusofonia, onde seu nome já era conhecido.
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