“As pessoas que perderam e testemunharam a morte, os familiares das pessoas que estiveram doentes, e passaram mal ou morreram, são um grupo que têm de facto um aumento de risco para luto e o luto muitas vezes complica-se e dá doença depressiva e stresse pós-traumático”, disse o investigador do Instituto de Saúde Pública do Porto em entrevista à agência Lusa, a propósito de um ano de pandemia.
O mesmo se aplica aos profissionais de saúde que estão na linha da frente e a sobreviventes que estiveram nos cuidados intensivos, estes últimos, “por via da idade e estados de grande fragilidade física”, a doença covid-19 e o tratamento impactou negativamente o cérebro, produzindo um estado confusional e afetando as probabilidades de sobrevida.
Para Ricardo Gusmão, esta crise também veio levantar outras questões, nomeadamente a forma como o país tem vindo a lidar com os seus idosos, nomeadamente os que estão nos lares, que recentemente “têm sofrido imenso” devido à diminuição de contactos sociais e pobreza de estímulos que têm um efeito prejudicial no cérebro, ficando este mais propenso ao desenvolvimento de demência.
A outra questão, apontou, é que “a pandemia acabou por nos confrontar com a morte e acabou por nos fazer refletir enquanto sociedade como é que estamos a gerir esta questão essencial da vida”.
“Temos de ter a noção de que houve períodos em que a mortalidade diária dobrou, se calhar, até mais do que dobrou” e “já havia muito luto quando morriam 300, 350 pessoas por dia”, disse, alertando que o facto dos familiares não se poderem despedir dignamente dos que morrem “é um fator de luto patológico importante”. Segundo o psiquiatra, o luto patológico é maior quando a morte é súbita e por causas um pouco inesperadas e a pessoa não pode despedir-se da pessoa que morre.
“Portanto, é de esperar mais processos de luto e isso vai dar em mais processos de luto complicado e, portanto, mais perturbações depressivas”, vincou.
No entanto, salientou, “não acho que seja caso para se falar em crise de saúde mental ou em nada parecido, a crise de saúde mental já existe há muito tempo. A questão é que a pandemia veio dar-lhe mais visibilidade”.
Mas a pandemia também trouxe "aspetos positivos", nomeadamente colocar as questões relativas à saúde mental na ordem do dia, junto da população e da classe política”.
“Hoje em dia quando se mencionam questões relacionadas com a saúde e a doença mental, quero acreditar, que as mensagens já não caem tanto em saco roto e que vão ao encontro das preocupações e dúvidas das pessoas”, mas também tem “um lado menos positivo pois na realidade pode alimentar um pouco a confusão que já existia antes entre saúde mental, sofrimento mental e doença mental”.
Ricardo Gusmão explicou que “uma coisa é viver afetado por uma doença mental e outra coisa é apresentar dificuldades de bem-estar e qualidade de vida, eventualmente uma saúde mental menos positiva e sofrimento mental de baixo grau e episódico, que são duas coisas completamente diferentes porque a primeira precisa sempre de tratamento”.
Outro aspeto positivo é que a investigação na área aumentou muito, só que mais uma vez atualmente apenas focada na covid-19, lamentou.
No seu entender, também se avalia pouco os aspetos positivos da pandemia, principalmente durante o primeiro confinamento: “para muitas pessoas, ao não terem que responder perante terceiros, não terem que responder perante elas próprias e as suas expectativas, inclusive terem podido não estar sujeitas a tantos estímulos ambientais e sociais, isso correspondeu a uma melhoria na sua qualidade de vida”.
Por outro lado, pessoas com problemas obsessivo-compulsivos ou aditivos tiveram “mais dificuldades com o confinamento porque passaram a comer mais, beber mais, ficaram mais obsessivas com as questões da limpeza, mais preocupadas com o medo da contaminação”, salientou.
“O que nós retiramos [da pandemia] é que aparentemente as pessoas com patologia grave mantiveram mais ou menos a continuidade de cuidados e as com patologia menos grave, mas que também estarão a ser afetadas pela pandemia de alguma forma, mantiveram-se mais de fora da rede de prestação de cuidados.
Ricardo Gusmão manifestou o desejo de que a consequência da pandemia fosse apostar na “prevenção das doenças mentais ou que, pelo menos, a prevenção precoce destas doenças pudesse ficar na ordem do dia”.
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