Donald Trump parece não querer que o mundo, mas sobretudo os norte-americanos, tenham dúvidas: o presidente dos Estados Unidos está recuperado — ainda que clinicamente infetado e doente com a covid-19 — e prontíssimo para continuar com a sua campanha política. Tanto assim é que hoje assinalou no Twitter que faz pretensões de participar no debate eleitoral com o candidato democrata na corrida à Casa Branca, Joe Biden, no próximo dia 15.
Ou seja, trocando por miúdos, a sensivelmente um mês das eleições presidenciais e ainda com dois debates televisivos para realizar (o tal de dia 15 e o último, marcado para 22 de outubro) Trump esclarece que está pronto para enfrentar Biden, uma vez que a sua situação de saúde "está estável" e se sente "óptimo". Aliás, segundo o seu médico, Sean Conley, o Presidente dos EUA teve uma noite repousada e não apresenta mesmo "qualquer sintoma".
"Sinto-me melhor do que há 20 anos", garantiu Trump, de 74 anos, na segunda-feira, quando regressou à Casa Branca depois de abandonar o Centro Médico Walter Reed, onde esteve três dias internado — curto período em que fez questão de mostrar que estava a trabalhar com recurso a fotografias que parecem ensaiadas, ignorou instruções médicas oficiais e saiu para ir saudar os seus apoiantes que estavam à porta do hospital.
Só que, como em quase tudo o que envolve o presidente Trump, parecem existir apenas duas maneiras de olhar para tudo isto: ou se condena ou se adora o gesto ("Deus abençoe o nosso presidente! Seria capaz de morrer por ele!", chegou a gritar um apoiante durante a passagem do carro do presidente). A sua chegada à Casa Branca é só mais um exemplo disso. É que, além de tirar a máscara, afirmou que não se "deve ter medo" do coronavírus e que os norte-americanos não devem ficar reféns do SARS-CoV-2.
A atitude foi condenada pela comunidade médica do país — e por inerência pela sua oposição política — uma vez que acreditam que a mensagem que o presidente estava a passar não era a correta. A CNN lembrou inclusivamente que o presidente está a receber os "melhores cuidados possíveis", a par de tratamentos experimentais que não estão ainda disponíveis para a generalidade da população. Contudo, o seu eleitorado parece ter recuperado a fé na persona que não se deixa abater por nada — nem pelo vírus — , visto que este regresso à Casa Branca significa que está em condições de voltar a trabalhar.
Francisco Semião, luso-americano que trabalha num dos maiores sistemas hospitalares de Washington, explica melhor à agência Lusa esta dualidade de opiniões. Quem não está com Donald Trump sente que este está a mostrar desprezo e arrogância pela gravidade do problema — sendo que "as suas atitudes podem influenciar pessoas a não levar a doença a sério". Já do outro lado da barricada, o eleitorado que segue o presidente está a ver "uma pessoa de alto risco que está a mostrar que as pessoas infetadas com este vírus têm uma grande taxa de sobrevivência se forem diagnosticadas e tratadas rapidamente".
Ora, esta terça-feira também se ficou a saber que a entidade reguladora do mercado farmacêutico norte-americana, a Food and Drug Administration (FDA), divulgou informação — leia-se indicações — atualizada para quem está a criar uma vacina contra o SARS-CoV-2. Mas, de acordo com o The New York Times, este documento esteve bloqueado durante duas semanas. E, segundo o jornal, por ordem da Casa Branca.
Convém frisar que isto se soube no dia em que Trump suspendeu negociações sobre o pacote que visa estimular economia dos EUA, em que o Twitter voltou a ocultar um dos seus tweets por considerar que o presidente está a partilhar informação pouco factual e que foi acusado por Nanci Pelosi, líder dos democratas no Congresso, de colocar "interesses pessoais" à frente dos interesses do país.
Portanto, apesar de toda a história conter ainda muitas camadas por deslindar e escamotear — à partida é difícil acreditar que a ida para o hospital se tenha tratado apenas por "abundância de precaução" —, parece que o presidente dos Estados Unidos continua igual a si próprio. Se havia a esperança de que Trump podia mudar o seu discurso à margem daquilo que aconteceu com Boris Johnson, após contrair o novo coronavírus e ser hospitalizado por uma doença que ridicularizou, está visto que mais depressa será necessário avaliar as novas regras dos dois vindouros debates — afinal de contas o primeiro foi considerado "o pior de sempre" — do que estar a avaliar transições de poder ou alterações da campanha. Porque está visto que Trump vai continuar a ser Trump até ao fim.
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