São Francisco de Assis (1182-1226), religioso italiano, foi o fundador da Ordem Franciscana. Era filho de um rico e conceituado comerciante de tecidos, mas a certa altura da vida fez votos de pobreza: tinha tudo, quis ficar sem nada. Mas como?
Reza a história que, depois de uma vida desregrada, resolveu ser cavaleiro — posto a que só conseguiria ascender se começasse por ser escudeiro de um nobre. À procura desse caminho, foi começando a mudar a sua forma de estar: se encontrava mendigos, desfazia-se dos seus pertences.
E tudo mudou. Conta-se que, em 1206, estando a rezar na capela de São Damião, em Assis, Francisco ouviu de Deus as seguintes palavras: "Vai, Francisco, e restaura a Minha Casa!". Imaginando tratar-se de reconstruir a capela em questão, voltou para casa, vendeu boa parte dos tecidos do pai e entregou-se a uma vida centrada na fé e no auxílio aos outros, percebendo posteriormente que a "casa" era a Igreja enquanto instituição, à qual deu o seu contributo.
Mas voltemos a Portugal. Em Braga, na Paróquia de São Jerónimo de Real, há uma igreja — e um convento — que tem como orago São Francisco, o santo padroeiro dos pobres e dos animais. E também ali há uma “casa”, esta literal, que precisa de fazer perdurar as histórias que o tempo teima em esbater.
No início da 2020, a Câmara Municipal de Braga viu aprovada a candidatura submetida para a conservação, valorização e promoção do Convento de São Francisco de Real. Com um investimento total de cerca de 2,5 milhões de euros, a intervenção tem como prazo de execução dezembro de 2021. Contudo, a participação na valorização do património não tem de partir apenas das instituições — e foi nesse sentido que os Amigos do Convento pensaram em trazer os habitantes locais (e até mais, se possível) para a história da terra.
Ao SAPO24, Pedro Campos, um dos responsáveis pelo projeto cívico de cariz cultural, explica como tudo começou, há cerca de dois anos.
"Sempre que passava por ali ficava a olhar para a Igreja, para o Mausoléu de São Frutuoso, que fica ao lado, e também para o Convento. Lembro-me perfeitamente de ter lido, nessa altura, uma frase de José Saramago, que dizia que somos habitados por uma memória — e eu tinha a memória do meu casamento ali, já há bastante tempo, mas que permanece. [Aquele espaço] passou a ser a minha casa e quero também que seja a casa de muita gente", começa por contar.
"Foi com essa ideia de querer fazer alguma coisa que suscitasse alegria e memórias nos outros que se começou a formar a minha vontade. Comecei a achar que podia criar um projeto que pudesse ajudar à valorização e à dinamização do Convento — até porque há já muitos anos que está para aqui a cair —, à boleia daquilo que é o projeto oficial de recuperação da Câmara municipal e da Universidade do Minho, que é algo que se vai arrastando devido a questões formais que têm de ser cumpridas", aponta.
Garantindo que "foi um bocado aleatório", mas com a convicção de que "Deus funciona assim e temos de estar atentos", Pedro Campos conta como é que desta vontade nasceu o projeto "Pintar Francisco".
"Estou ligado ao jesuíta Paulo Duarte e ele fez um gosto num dos posts do Ruben Ferreira, que eu não conhecia. Aquilo passou-me no feed, era uma pintura de São Francisco de Assis que ele tinha feito. Parece que vi ali qualquer coisa. Entrei em contacto com o Ruben e a primeira coisa que pedi até foi se ele não gostaria de nos oferecer um quadro para vir a estar na Igreja. Mas depois as coisas foram-se desenvolvendo e surgiu-me outra ideia: mais do que ele oferecer e ser um ato isolado, podia ser interessante mobilizar as pessoas, envolver a comunidade", confidencia.
Feitas as contas, o quadro que um dia chegará a Braga tem o valor de 2.500€ e são precisos 5 mil mecenas para cumprir a missão dos Amigos do Convento. E tantos porquê? Porque os donativos têm um limite: cada pessoa só pode dar 0,50€, nunca mais — e o seu nome vai ficar registado num documento oficial, que acompanhará a obra.
"Se tivesse meia dúzia de mecenas, como acontece sempre, eles chegavam com o dinheiro, batia-se palmas, ficava tudo bem na fotografia e iam embora. Aqui quero que haja história. Quero que a mãe que contribuiu pelo filho que tem agora 15 dias vá lá daqui a 10 anos e diga: 'Estás a ver aquele quadro? Está aqui o teu nome no livro, também ajudaste'".
Para Pedro, o grande objetivo é que "a iniciativa não se esgote nela própria e perdure durante séculos. Daqui a 200, 300 ou 500 anos, as pessoas vão lá e vão ver que aquele quadro é resultado do esforço da comunidade que se organizou", atira.
Daí esta ideia de "Pintar Francisco": "Não vamos comprar Francisco, vamos pintar Francisco. Aliás, até foi o Ruben que disse isto. A obra tem de ser única", reflete Pedro.
Ao SAPO24, Ruben Ferreira conta que Pedro "viu o São Francisco que tinha feito para um cliente no Texas, nos EUA, e gostou muito desse quadro".
"Achou logo que tinha sentido estar neste projeto [dos Amigos do Convento], mas isso não é possível sem alguns donativos. Eu não faço isto a tempo inteiro, trabalho num hospital em Londres, e para ter espaço para pintar preciso de algum contributo", explica.
Por isso, mesmo com incertezas quanto à viabilidade financeira do projeto, Ruben aceitou logo. "Quando Deus mete uma coisa no nosso coração, Ele faz acontecer. Pelo menos eu acredito nisso e então comecei mesmo com esse risco, confiante na providência".
Pintar Arte Sacra é "uma grande responsabilidade para os artistas". E Ruben não é exceção. "Sou uma pessoa bem-disposta, mesmo quando se fala assim em coisas sérias. Deus é amor e alegria; se nós não tivermos alegria quando falamos d'Ele é uma tristeza. É isso que também tento que caracterize os meus trabalhos."
"Eu sempre ouvi a frase 'um santo triste é uma tristeza de um santo'. Eu tento transmitir sempre essa alegria e essa felicidade que sinto na minha relação com Deus", atira.
Mas nem sempre é fácil pintar algo que envolve espiritualidade e, muitas vezes, pessoas das quais não existem registos fotográficos exatos, como é o caso de São Francisco. Porém, há sempre por onde começar.
"Temos algumas descrições da época que dizem mais ou menos como é que ele era e há alguns frescos de Giotto, na Basílica de São Francisco, em Assis, que poderão ser muito aproximados ao que ele foi. Eu tentei ver esses frescos e, através da minha oração, da imaginação e do que conheço de São Francisco e de como me relaciono com ele, foi surgindo o quadro", aponta o pintor.
"Eu sei que há artistas que acham que o resultado final depende inteiramente deles, mas eu não tenho essa pretensão. Eu acho que começo e Deus continua. Por isso é que, por vezes, eu olho para os quadros e penso 'isto ficou mesmo bem' e fico surpreendido com o resultado. Volto várias vezes ao estúdio para ver os quadros e deixo-me surpreender pelo inesperado que Deus traz também para este processo criativo", continua.
O quadro pedido pelos Amigos do Convento não será uma cópia do que seguiu para os Estados Unidos. "Um quadro nunca é igual ao outro. Não sou uma impressora, e também depende das minhas emoções, do que estou a vivenciar, até posso ter agora uma perceção diferente do santo. É por isso que a arte acaba por ser cara, não é um trabalho que é feito em massa e leva sempre um pedaço da alma de cada artista".
Para esta obra, Ruben utilizou técnicas diferentes das habituais, e confessa-se "extremamente surpreendido" com todo o processo. "Já olho para este São Francisco e penso que a partir de agora vou tentar pintar os próximos santos de outra forma. Acho que a Arte Sacra tem de ser um lugar de encontro com Deus, por isso é que não funciona para mim aquela Arte Sacra distante e fria. Temos de mostrar Jesus ou os santos como eles de facto eram, para que esse encontro aconteça", explica Ruben. "[Este São Francisco] mostrou-me um caminho diferente, que me vai fazer ser mais solto e mais liberto na maneira de os representar, para que pareçam mais humanos, mais reais".
À espera do dia de São Francisco
Apesar de o projeto já estar em curso, a campanha de angariação de fundos só começa oficialmente a 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis. Até lá, dá-se a conhecer o "Pintar Francisco" apenas online, no passa palavra ou com alguns artigos na imprensa — tudo "de uma maneira muito simples, ao jeito de São Francisco". E tem vindo a resultar: já foram ultrapassados os 1.190 contributos.
Até ao momento, a maioria dos donativos são da zona de Braga e dos concelhos vizinhos, mas já há também alguns "lá de baixo", da zona de Lisboa. E o objetivo é que se envolva todo o país. Entretanto, o projeto já chegou ao Vaticano: "Escrevi para o Papa, para abençoar a iniciativa. Só pedi mesmo a oração e a bênção", revelou Pedro Campos.
Apesar de o processo ser moroso, Pedro Campos não tem qualquer dúvida: o objetivo vai ser atingido. "O prazo vai depender da boa vontade das pessoas, mas vamos passo a passo. Ninguém tem pressa, ninguém vive disto. Não há aqui stress absolutamente nenhum. O quadro vai ser nosso, de certeza absoluta", rematou.
Para Ruben, o importante é que "cada um sinta que São Francisco no quadro lhes fala, que lhes toca de uma maneira diferente da que me toca a mim. Porque, realmente, é importante as pessoas perceberem que há sempre uma relação pessoal, ainda que tenhamos uma fé comum".
"Por exemplo, quando fiz agora a coroação de Nossa Senhora para um painel grande para a Igreja da Charneca, fiz Nossa Senhora mais envelhecida, porque já não seria propriamente uma jovem quando morreu. E houve uma senhora do Canadá que me contactou a dizer que estava com muitas dificuldades no seu processo de envelhecimento e que, de repente, ao ver Nossa Senhora mais envelhecida, que se reconciliou com isso. Viu que Maria também passou pelo mesmo e diz que de repente se sentiu acompanhada nesse processo. A relação com o divino é sempre pessoal. A arte é do artista, mas este não a possui. A arte é de todos e diz coisas diferentes a diferentes pessoas".
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