Duas grandes pedras de xisto, uma maior que outra, erguem-se à frente da fonte da pequena aldeia, assentes numa fundação que esconde restos de casas que arderam. No meio das duas pedras, surgem outras duas mais pequenas, uma negra e outra branca, a simbolizar a ligação à terra e ao céu, respetivamente, explica à agência Lusa João Carvalho, artista do Nodeirinho, mais conhecido por João Viola.
Ao lado de uma das pedras, vai ser colocada uma asa, e, na parte da frente do memorial, uma frase bíblica que ecoa na cabeça de João Viola desde que viu tudo destruído: “Eis que faço novas todas as coisas”.
Por detrás das pedras, estará também uma placa com o nome das 11 pessoas de Nodeirinho que morreram em 17 de junho de 2017 e uma referência às plantas e animais que também morreram nesse dia.
No meio do terreno onde está situado o memorial, há também a placa a indicar Nodeirinho (que perdeu a cor com as chamas e que João Viola pintou por cima) e várias plantas e árvores que foram sendo doadas à aldeia.
Aliás, o monumento simboliza a solidariedade que a aldeia foi registando: as pedras de xisto doadas por uma empresa da região, a asa feita por um artesão de uma aldeia vizinha, as obras por um empreiteiro local e as plantas que vieram de todo o país ao longo deste ano.
Segundo João Viola, o memorial será inaugurado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, durante o assinalar de um ano após o grande incêndio de Pedrógão Grande.
O projeto começou a ser pensado depois do incêndio, foi ganhando outras formas e feitios daquela que terá na inauguração, mas, desde o início, que o pintor de Nodeirinho quis que aquele memorial não fosse um monumento fúnebre.
“Na altura em que isto aconteceu, pensei que isto está morto, mas virá um mundo novo e essa frase [‘Eis que faço novas todas as coisas’] manteve-se e esteve sempre a bater-me na cabeça”, frisou.
O monumento é “um memorial à vida dos que se salvaram” na fonte da aldeia. Fonte essa que também simboliza a razão de Nodeirinho existir, porque sempre por aquele vale “houve água”, sublinha João, referindo que só se lembra da ribeira secar por duas vezes na sua vida.
Por Nodeirinho, mantém-se a placa que João Viola pintou com cores coloridas a indicar a localidade, mas os gritos a lembrarem o quadro do pintor Edvard Munch que na altura criou em chapas queimadas já não se encontram espalhados pela aldeia.
Os grandes incêndios de 15 de outubro recordaram-lhe as imagens de Pedrógão Grande e ficou “mais desestabilizado”. Pediu apoio psicológico e a responsável pela equipa comunitária de saúde mental sugeriu-lhe fazer um quadro, onde exprimisse a raiva que sentia na altura.
Pegou numa prancha de madeira e pintou caras e gritos de raiva (à semelhança dos que já tinha pintado antes), em tons de preto, vermelho e verde – “os primeiros verdes que pintei”, conta.
Hoje, no seu ateliê, já volta aos tons pastel – os “tons tranquilos” de que sempre gostou – e às imagens dos trabalhos no campo.
O regresso ao trabalho e às pinturas que fazia acompanham também a regeneração que se vai sentindo pela aldeia. Já se vão ouvindo alguns pássaros, já se veem algumas abelhas e o verde desponta pela terra antes queimada, o que anima o pintor de Nodeirinho, muito ligado à terra.
No entanto, “as cicatrizes ainda estão muito visíveis”, seja nas placas das localidades calcinadas, nas árvores queimadas de pé, nas borboletas que teimam em não aparecer ou no casal de veados que comia atrás da sua casa e desapareceu.
O cenário está um pouco como o quadro onde procurou exprimir a raiva que sentia. Já pintou por cima outras coisas, mas ainda se veem alguns gritos que falta apagar.
“Agora, tenho de pintar outras coisas por cima”.
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