Tem 91 anos e escreve dos posts mais interessantes do Facebook - sobre política, sobre fotografia e poesia, sobre economia e família. É embaixador e neto do presidente do Conselho que antecedeu Salazar. O tetravô fundou a Fábrica dos Pastéis de Belém e deserdou a filha, que preferiu o tesoureiro do Banco de Portugal a casar com um comerciante rico; era a bisavó Violante, a quem sempre ouviu dizer: "A energia vem-nos do amor, não do dinheiro (ou dos pastéis de nata)".
E energia é coisa que não falta a Luís Soares de Oliveira, bem como sentido de humor. "Combinações de nonagenários", escreveu um destes dias no seu mural: "Os três sobreviventes do curso do Colégio Militar de 1938-1945 combinaram almoçar. Um deles enviou ontem um email alegando motivos de força maior. Hoje, perto das 13:00, telefonei ao outro a perguntar se precisava de boleia. "Para quê?" "Para o almoço na Feitoria". "Ah, não posso ir". "Porquê?" "Já almocei"."
Foi aluno do Colégio Militar, tal como o avô tinha sido oficial de cavalaria, e, apesar de licenciado em Economia e Finanças, inicialmente optou pela carreira diplomática – Marcello Caetano fez parte do júri do último concurso a que se submeteu no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Passou pelas Nações Unidas, pela Embaixada de Washington, por Seul, por São Paulo e por Londres até receber uma proposta de José Manuel de Mello para liderar a diversificação do grupo no Brasil.
Marcello não gostou, mas teve de se render às evidências e deixar partir o seu colaborador. Luís Soares de Oliveira cumpriu bem a sua tarefa, mas acabou incompatibilizado com José Manuel de Mello. A separá-los, mais do que um oceano, uma revolução que veio alterar muito planos, muitas vidas. Esta é a de um homem que desde cedo, e também por força do primeiro casamento, com a filha do escritor Branquinho da Fonseca, conviveu com liberais e marxistas.
Diz que passou "sem deixar marca" e ficou intrigado quando o SAPO24 lhe pediu esta entrevista. Não poderíamos estar mais em desacordo; Luís Soares de Oliveira é uma mais-valia para quem tem a sorte de o ler, de o ouvir e de o conhecer.
"O meu avô foi presidente do Conselho, antecessor de Salazar. Odiava política e Carmona esteve até às cinco da manhã a convencê-lo a aceitar o lugar"
Começo por lhe perguntar pelo seu avô, militar, presidente do Conselho. Também foi aluno do Colégio Militar, havia essa tradição?
O meu avô foi presidente do Conselho, antecessor de Salazar, que derrubou dois governos militares em que participou. Era óbvio que Salazar queria ser chefe de governo, mas os militares do 28 de Maio não aceitavam, para eles o presidente do Conselho e o presidente da República tinham de ser oficiais generais. Quando o presidente Óscar Carmona convocou o meu avô, que odiava política, para uma reunião em Belém, eles já se conheciam, e Carmona esteve até às cinco da manhã a convencê-lo a aceitar o lugar. Salazar ficou ministro das Finanças e foi assim que começou o período mais ingrato da vida de Domingos de Oliveira, entre Janeiro de 1930 e Julho de 1932.
Não gostava de política porquê?
Era muito autêntico, e a política é a arte da dissimulação. Ele não aceitava isso, era pão-pão, queijo-queijo. E era muito respeitado pela sua figura moral, não pelas suas posições políticas. A única coisa que para ele foi sempre imperativo foi impedir o terrorismo, naquele tempo até os miúdos andavam com bombas no bolso. Para ele, todos os que pegassem em armas e não fossem militares deviam ir para os Açores, Cabo Verde ou Timor. Ele era pela ordem, acreditava que não podia ser a rua a mandar. E penso que isso ele conseguiu, estabelecer uma certa ordem, o que foi bom. Quando começou a Guerra Civil Espanhola, as coisas aqui não pegaram fogo, a oposição estava reduzida ao Partido Comunista, havia alguns guerrilheiros, alguns anarquistas... Lembro-me de que o meu avô mandou atirar sobre os navios, mesmo não sabendo se o seu filho, que era imediato, estava ou não dentro de um deles. Um navio encalhou na Caparica, outro na Cruz Quebrada, mas apanharam uns tiros. Por acaso o meu tio não estava a bordo, tinha ido apresentar-se no Arsenal de Marinha para embarcar e não o deixaram, mas o meu avô, que estava no Estoril e foi comandar para o quartel do alto da Parede, não fazia ideia disso. Ele era um mandão, mas adorava aquele filho, Augusto, que era engraçadíssimo, um bem-disposto.
"Do meu avô recebi uma lição muito importante: "Nunca mostres medo. Todos temos medo, mas ai de quem o mostra. O cobarde será manipulado toda a vida""
O que recorda do seu avô ou o que herdou dele?
Do meu avô recebi uma lição muito importante: "Nunca mostres medo. Todos temos medo, mas ai de quem o mostra. O cobarde será manipulado toda a vida". Perguntei-lhe como se domina o medo. "Enfrentando-o, fazendo sistematicamente aquilo que nos mete medo". E foi por isso que um dia me encontrei sozinho a pilotar um avião Piper Cub, sobre o Tejo e as salinas de Alverca, e que, mesmo não sendo dado à tauromaquia, desci duas vezes à arena, uma para pegar um garraio, outra, em Espanha, para passar uma vaca brava ao capote.
A família tem para si um peso muito grande, fala muito nos filhos, nos netos. Lembro-me de ter lido a certa altura que "conversas com a bisavó nunca são tempo perdido".
Violante Clara Alves Oliveira, a minha bisavó paterna, foi a pessoa mais antiga com quem falei. Nasceu quando ainda reinava em Portugal D. Maria II e o seu distinto marido, D. Fernando II (Casa de Saxe-Coburgo). Só já vi a sua beleza em fotos, foi uma senhora avançada para a época. Encontrava-a pousada num cadeirão de verga, muito almofadado, e de onde já não saía pelo seu pé. Tinha a voz sumida, uma prosa breve e repetida, mas que ainda entretinha. Recordo-me de, no Verão de 1939, acabada a Guerra Civil Espanhola e anunciada a II Guerra Mundial, ouvi-la dizer aos bisnetos: "Meninos, o mundo está roto". O seu pai, Domingos Raphael Alves, era um empreendedor e chegou do Brasil pronto para aplicar um bom capital. Por força de uma lei introduzida pelos liberais, os conventos, a grande indústria do absolutismo, estavam a ser encerrados, e ele comprou a receita dos pastéis conventuais salesianos e fundou a Fábrica dos Pastéis de Belém [1837]. Enriqueceu à custa da gulodice alheia e fez rico o filho Domingos, mas não a filha. Queria casá-la com um comerciante, mas a minha trisavó estava apaixonada pelo tesoureiro do Banco de Portugal, com quem casou. Acabou deserdada. Não sei se os meus avós terem nascido pobres foi graça ou desgraça. Mas foi ela que me ensinou isto: "A energia vem do amor, não do dinheiro (ou dos pastéis de nata)".
O seu avô era monárquico. Como se define?
O meu avô era respeitador do rei e da rainha, tinha uma grande admiração pela rainha D. Amélia. Mas admirava-a sobretudo porque ela era uma boa cavaleira. A minha mulher sim, é monárquica, mas sendo dinamarquesa é normal. E zanga-se comigo, diz que não respeito a monarquia [risos]. Fiquei muito intrigado com a sua curiosidade pelo que me respeita. Fui uma personagem transitória, passei sem deixar marca. Podia ter chegado mais longe, mas na altura do quase veio a revolução e o mundo ruiu. Foi o "Finis Patriae". Quer dizer, a revolução não foi nada que não esperássemos, pensávamos muitas vezes: "Quando isto der a volta...". Mas depois apanhou-nos de surpresa. Éramos jovens e recebi esse impacto. A verdade é que só percebi quem eu era no 25 de Abril. A minha vida pessoal ficou péssima de repente.
Porquê péssima?
Porque na altura eu era administrador do Banco Totta & Açores e quem estava na administração dos bancos e seguradoras foi para uma lista, ficou com as contas bancárias congeladas e não podia sair do país.
"O meu nome foi o único que foi mandado retirar da lista [dos administradores de bancos] por ordem directa do primeiro-ministro [Pinheiro de Azevedo]"
Mas saiu...
O Sá Machado, que era chefe de gabinete do primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, disse-me: "Tens de ir ao teu banco perguntar se têm alguma coisa contra ti, pedes uma cartinha, trazes e deixamos-te ir". E lá fui eu ao banco. Lembro-me que estavam lá três administradores e eu disse: "Venho cá perguntar se os senhores têm alguma coisa contra mim". "Não, não temos nada contra si". ""E podem pôr isso por escrito?" Passaram-me uma carta, que ainda hoje tenho, assinada por Artur Santos Silva, e dali fui para São Bento, que estava cercado. De maneira que tive de telefonar ao Sá Machado de uma cabine pública: "É para dizer que tenho aqui o papelinho assinado, mas não consigo chegar aí". E do outro lado ele responde: "Olha, vê lá se consegues furar o cerco e traz uma sandwich que estamos aqui a morrer de fome". [risos] Eu disse pelo telefone que tinha o papel comigo e ele telefonou para a alfândega, ou não sei para onde, e tiraram-me da lista. É engraçado porque alguém escreveu um livro sobre o 25 de Abril e vinha lá a dizer que o meu nome foi o único que foi mandado retirar da lista por ordem directa do primeiro-ministro.
Isso foi depois do convite de José Manuel de Mello para liderar a diversificação do grupo no Brasil?
Sim. José Manuel de Mello disse-me em Londres, em 1972, que gostaria de falar comigo e convidou-me para jantar, mas pediu-me que levasse a minha mulher, que o assunto era importante e ela também teria uma palavra a dizer. Ele tinha estado comigo em São Paulo, onde fui cônsul-geral. Ao tempo, ele queria comprar lá um banco. E então disse-me que queria diversificar e expandir o grupo CUF no Brasil e queria que fosse eu a assumir o comando. Para mim era altamente tentador. A minha mulher não disse nada, mas do Brasil gostava muito e estava sempre pronta. Na altura ele disse-me: "Mas você vai precisar de tempo para pedir as licenças e tratar da papelada...". "Não vou, não", respondi eu. "Vou tratar disso muito depressa". Depois fui ter uma conversa com Marcello Caetano no Forte do Catalazete.
O que lhe disse e como reagiu Marcello Caetano?
Ele ouviu-me e ficou furioso: "Esta mania de virem buscar pessoas ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fazem-me falta". E então eu disse-lhe: "Ó senhor professor, o senhor manda no país, mas deixe-me a mim organizar a minha vida". E ele respondeu: "Lá isso tem razão, a vida é sua".
"Em 1967 Marcello Caetano respondeu: "Centro, em Portugal, não há. Há extrema-direita e extrema-esquerda, não há mais nada""
Como era Marcello Caetano?
Ah... Quizilento. Tinha bom fundo, mas era muito autoritário. Marcello Caetano foi presidente do júri do último concurso profissional a que fui submetido no Ministério dos Negócios Estrangeiros para conselheiro da embaixada [1966]. A minha tese versava sobre a intervenção externa (já então era tique meu). Marcello Caetano discordou radicalmente que se considerasse a ajuda externa modalidade – ainda que refinada – de intervenção, posição que eu havia assumido na monografia e sustentei no debate. Dizia que era um meio de cooperação, eu defendia que era ingerência. Ainda assim, o júri atribuiu-me um Muito Bom, sem o qual nunca teria sido conselheiro da embaixada em Londres. Portanto, eu tinha uma certa confiança em que se pode vencer as contrariedades com argumentos. No fim da conversa no Catalazete, que terá sido em Julho de 1972, quis saber: "Como estão as coisas em Londres?" Nós esforçamo-nos, mas a guerra não se vende", respondi-lhe. "O que é que quer dizer com isso?", perguntou surpreendido. "Quero dizer que ninguém compra". Fiquei com a impressão de que nessa altura ele já estava a mudar. Antes – 1967 -, ele tinha estado em São Paulo a dar umas aulas na Faculdade de Direito e fomos almoçar uns mariscos mais para o pé da praia. No regresso ele estava mais aberto e atrevi-me a perguntar: "Não seria possível formar em Portugal um governo mais ao centro?" E ele respondeu: "Centro, em Portugal, não há. Há extrema-direita e extrema-esquerda, não há mais nada". Já estava a experimentar o terreno, mas tinha medo.
"Saíamos e entrávamos à socapa no Colégio Militar marinhando pelo cabo do pára-raios, tínhamos de usar as luvas da guarda de honra"
Gostaria de ir mais atrás, ao tempo em que estudava no Colégio Militar...
E que saíamos – e entrávamos – à socapa, marinhando pelo cabo do pára-raios, tínhamos de usar as luvas da guarda de honra. Uma vez, estava já lá em cima, era a altura de dois, talvez três andares, oiço uma voz lá em baixo: "Não precisa estar com esse trabalho, pode entrar pela porta". Era o oficial de serviço, na altura tenente Morais. Às vezes éramos apanhados. Uma vez telefonou para lá uma senhora à procura de um, foram à camarata e viram que na cama estava um boneco. Foram passar revista e descobriram que estavam bonecos em mais camas, de maneira que ficaram à nossa espera. Os Morais eram três irmãos, netos do visconde de Morais, um homem riquíssimo que financiou as incursões monárquicas de Paiva Couceiro, tinha fortuna no Brasil, um banco, e era dono de uns 10% da baixa do Rio de Janeiro – o bom capitalismo. Este neto era o Zé, fazia o pino em cima do cavalo... Como bom cavaleiro, não me castigou.
Bom amigo, o Zé Morais.
Era óptima pessoa. É engraçado, porque muitos anos mais tarde, quando eu estava em São Paulo, surgiu um problema com um armazém de café – ter um armazém de café desalfandegado no porto de Santos é uma mina de ouro – e uma questão de uma herança, da qual os irmãos Morais eram legítimos herdeiros, mas que, por não estarem no Brasil e sim em Portugal, havia uma série de regulamentos a cumprir. Estavam com dificuldades e vieram pedir-me se eu poderia interceder. Consegui que a herança fosse reconhecida e lá vieram os três manos Morais agradecer. E eu então disse: "Se naquele tempo me tem castigado, eu agora não tinha feito isto". [risos] As voltas que a vida dá, nunca sabemos.
Apesar de querer seguir a carreira diplomática, fez Económicas, o que não é comum...
Fiz o Colégio Militar durante a guerra, lia tudo sobre o assunto, americanos, japoneses, todos os grupos e facções. E tinha um tio capitão de artilharia, inteligentíssimo, que sabia explicar tudo e tinha histórias fantásticas. Por tudo isso sempre quis seguir a carreira diplomática. Quando saí do colégio fui para Económicas, que era a maneira mais rápida de me habilitar. Tive de me inscrever em Economia, mas quando cheguei lá descobri que havia a fama de que os inteligentes iam para Finanças e os estúpidos iam para Economia. Decidi fazer Finanças, que era mais um ano, acabei em 1949. Só houve concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1953, perdi quatro anos, porque com a mania de não ser burro, fui mesmo burro.
No início desta conversa disse que só tomou verdadeira consciência de quem era no 25 de Abril. Lembra-se da sua primeira experiência política?
Em 1949 ganhei o prémio de melhor aluno de francês do Institut Français du Portugal, que me deu uma bolsa de estudo numa universidade à escolha. Fui para Dijon, mais perto da confusão, totalmente dominada por comunistas, desde os alunos aos professores. Foi a minha primeira experiência política, pode dizer-se, e marcou-me muito. Estavam lá mais portugueses: um que viria a ser advogado do bispo do Porto contra Salazar, outro que era padre e os irmãos Meireles, filhos de um vitivinicultor da região do vinho verde. Uma vez o pai mandou-lhes dinheiro para eles comprarem material de laboratório, mas estávamos em Setembro e eles só viriam a Portugal no final do ano lectivo. Então os irmãos Meireles foram a uma feira que havia em Paris de material obsoleto que os americanos mandavam para lá e descobriram o Mercedes com que o Göring entrou em Paris, um carro enorme, blindado, baratíssimo, ninguém o queria. E compraram o automóvel. Apareceram assim no pátio da cidade universitária e veio tudo a correr aos gritos bater nos manos Meireles: "Les Fascistes, les fascistes". Nós, os portugueses que estávamos lá, incluindo o padre que dizia missa, fomos defender os Meireles, de maneira que foi uma enorme sessão de pancadaria, uns dentro do carro, outros fora do carro. Uma experiência política violenta.
De volta ao Brasil. A primeira vez esteve como cônsul-geral, a segunda a convite de José Manuel de Mello. Como correu essa segunda incursão?
Já estávamos em luta e o grupo queria fazer lá o equivalente à Lisnave, que era a Renave – Reparação Naval, era como se chamava. Havia as duas grandes empresas de transportes marítimos, a Petrobras e a Vale do Rio Doce, que tinham navios especiais, os coal oil, que levavam minério para o Japão e na volta traziam petróleo, estavam preparados para transportar as duas coisas. Esses navios tinham a maior frota do mundo e reparação assegurada, era um negócio da China. Foi uma luta muito grande entre as maiores empresas do mundo e nós apresentámos a nossa proposta. Lembro-me de o examinador nos perguntar por que motivo recomendávamos uma doca com xis metros. O engenheiro Carreira, da Lisnave, responsável pelo projecto, respondeu: "Não recomendamos, são os senhores que pedem uma doca com esses metros no caderno de encargos". E ele pergunta: "Então, vamos admitir que não pedíamos. Qual a dimensão que considerariam adequada para a frota em causa?" E o nosso técnico diz: "Vou pensar..." "Muito bem, mas amanhã tenho de ter uma resposta". "Não, não. Dê-me meia hora". Nesse tempo não havia laptops. Os computadores eram máquinas imensas que se instalavam nas caves dos edifícios. No Brasil havia apenas um centro de informática instalado na Universidade de São Paulo. O engenheiro Carreira fez as contas de cabeça e entregou o resultado. O júri brasileiro ficou estarrecido, tinham mandado estudar o assunto na Universidade de São Paulo, demorou uma semana, e o resultado era o mesmo. A partir daí a coisa correu a nosso favor.
"Ganhámos o concurso [no Brasil] e fui ao apartamento do José Manuel de Mello: "Veja". E ele diz: "Ó, desgraça!" "Então porquê?" "Agora nacionalizaram a Lisnave, não temos dinheiro para fazer isso".
Ainda assim, continuava a haver divergências.
Sim. O ministro dos Transportes, que era do Rio de Janeiro, tinha proposto que o estaleiro fosse no Rio de Janeiro, e nós propúnhamos Vitória, no Espírito Santo, a solução técnica perfeita, mas politicamente desastrada. O ministro das Finanças, Delfim Neto, era a favor da nossa solução. Então eu fui ter com o nosso embaixador Futscher Pereira, um dos nossos colegas mais notáveis, contei-lhe o que se estava a passar e perguntei-lhe o que devia fazer. Aconselhou-me a puxar o assunto para o ministro das Relações Exteriores. Então pedi ao Delfim Neto para pedir um parecer ao ministro das Relações Exteriores, que logo veio dizer que o Brasil já estava muito dependente do Japão, que era preciso diversificar as dependências e a melhor solução era a apresentada por Portugal. Ganhámos o concurso e quando foi publicado no jornal fui ao apartamento do José Manuel de Mello, acordei-o: "Veja". E ele diz: "Ó, desgraça!" "Então porquê?" "Agora nacionalizaram a Lisnave, não temos dinheiro para fazer isso". E as coisas começaram a fugir um bocado de lado... Depois houve uma cena em que José Manuel me colocou mal perante Futscher Pereira, eu protestei e ele reagiu mal, cortámos relações. O José Manuel tinha um bocado de raiva...
Raiva de quê? Porque cortou relações?
Eu estava com ele quando chegou pela rádio a notícia da nacionalização da holding do grupo. Chorou. Disse: "A culpa disto foi da minha avó, eu queria era divertir-me e ela é que me disse para eu trabalhar e desenvolver as empresas do meu avô... Afinal estive a trabalhar para os comunistas". Depois fomos a Brasília, havia uma reunião como ministro da Marinha e o ministro dos Transportes, íamos assinar o contrato, e ele disse-me que fazia questão de que o embaixador lá estivesse. E eu telefonei-lhe. Chegámos lá, ele pede a palavra e pumba: "Meus senhores, a holding da Lisnave [Sociedade Geral] foi nacionalizada, perdi o controlo accionista, que passou para os holandeses [Verolme, que também estava entre os finalistas no Brasil], e venho aqui dizer a vossas excelências que desisto". Futscher abandonou a sala desesperado. Fiquei varado, não sabia de nada, palavra de honra. No avião de regresso ao Rio disse-lhe: "Colocou-me numa posição muito chata". Nunca mais falámos, mas fui ao seu enterro. Foi um grande português.
Nem com os filhos?
Encontrei um dos filhos, uma vez, numa recepção em Queluz. Foi ele que me reconheceu e me veio falar: "Lembra-se de mim? Estive consigo e com o meu pai numa praia em Copacabana." E lá me lembrei.
Esteve no Rio e em São Paulo, duas cidades muito diferentes.
O Rio de Janeiro era muito mais aberto, tem muita influência americana. São Paulo é mais trabalho. Agora, o Rio tem isto: ou se é rico, ou não se é nada. São Paulo tem classe média e, na minha maneira de ser e de ver as coisas, senti-me melhor em São Paulo. Eu trabalhava no Banco Itaú, aprendi muito, coisas que cá ninguém sabia o que eram e que acabei por ensinar, como comprar no mercado de futuros. Havia um agrónomo na administração da Aga que dizia: "Se eu ganho, alguém perde. Quem é que perde?" Tem de se comprar na baixa e uma vez chegámos a comprar açúcar a um preço tão baixo que nos permitiu ganhar um fornecimento para a Argélia. Nós, que não produzíamos açúcar de beterraba, conseguíamos ter açúcar refinado, empacotado e desembarcado mais barato do que os países produtores. E a Argélia consome tanto açúcar no mês do Ramadão, em Maio, como nós o ano inteiro. Mas isso são outras histórias.
Sobre o caos em que se transformou o Brasil...
Sabe, alguns países nasceram para ser democráticos, outros não. Não é uma receita universal. A Inglaterra, os Estados Unidos, a França desenvolveram elites que manobravam o parlamento, sabiam o que queriam e tiveram sorte, a coisa correu-lhes bem: multiplicaram empregos e, embora a desigualdade se agravasse, os povos sentiram que estavam a melhorar. Isto aconteceu com uma indústria manufactureira, não com uma economia de serviços, como é a nossa, ou com uma economia agrícola, como é a brasileira. A democracia não serve nessas coisas, porque não multiplica empregos em quantidade suficiente. Aquilo que nos anos dos generais – embora alguns generais roubassem, é claro – acontecia, é que havia uma ordem. Uma ordem oficial. Mas quando o indivíduo não consegue multiplicar empregos, multiplicar rendas, as coisas deixam de funcionar, chega um ponto em que a ansiedade e as aspirações são muito superiores à realidade. Os alemães já tiveram de recorrer ao autoritarismo, os italianos também, não conseguiram dar satisfação às aspirações de outra maneira. E impuseram uma igualdade, ou uma menor desigualdade, a partir do cabo da espada.
"Somente os portugueses e os seus descendentes teriam conseguido criar e manter a unidade política sem guerras internas numa tão vasta região povoada por gente de tão diversas culturas"
O cabo da espada. Foi isso que foram estas eleições presidenciais? Para o Brasil de hoje, que soluções?
Brasil, grande nau, grande tormenta. Os problemas do Brasil são os de todas as sociedades emancipadas, agravados pela sua dimensão. Somente os portugueses e os seus descendentes teriam conseguido criar e manter a unidade política sem guerras internas numa tão vasta região povoada por gente de tão diversas culturas. Fizemos um Brasil grande e redondo na medida em que nele existem todos os recursos necessários à vida humana, mas dividimo-lo em classes. Veio a liberdade, veio o capitalismo, a economia cresce, mas a desigualdade também. A seu tempo, os que menos têm compreenderam que a igualdade não é automática e decidiram lutar para dilatar o seu quinhão. A corrupção tem sido o instrumento mais usado para manter o sistema brasileiro integrado no internacional. É prático, é barato e dá dinheiro. E isto estendeu-se também aos que vinham de baixo, com o voto popular. O populismo apresenta-se de momento como um estratagema – vivemos na época dos estratagemas – com potencial para atrair e sossegar as massas. Duas dúvidas: quanto tempo durará e quem tem as mãos nos comandos, o capital ou outros. Entendo, contudo, que o voto em Bolsonaro deve ser lido como castigo a Lula, que traiu o povo.
Cinco filhos, doze netos...
Uma equipa de futebol. Os meus filhos pedem-me para colocar todas estas memórias em livro, mas o que para eles é curioso, para mim às vezes é doloroso. Vamos tendo experiência interessantíssimas na via, mas a verdade é que nos vamos separando daquilo de que gostávamos. E das pessoas. E, quando começo a pensar [emociona-se], dói. Tive sorte, também porque procurei a profissão que me permitiu esses contactos. E porque casei com a Maria, filha do escritor Branquinho da Fonseca, que me pôs em contacto com o outro lado, a face oculta para os salazaristas, que eram os republicanos. O Branquinho da Fonseca era filho do Tomás da Fonseca, um dos mais activos dirigentes do republicanismo. Quando me casei disse-me assim: "Ó Luís, tu tens uma quinta?" "Não, não tenho". "Então toma cuidado, que neste país só pode ter opiniões quem tem uma quinta" [riso]. Ele, coitado, perdeu vários empregos por causa de Salazar e refugiava-se lá na quinta onde cultivava as suas favas e essas coisas com que ia sobrevivendo. Bem, ainda tinha uns pinhais no Caramulo... Enfim, tinha com que se governar, mas era engraçado. O Branquinho era o mais tolerante e mais racional dos homens. Conheci essa gente toda, dei-me com o chefe da maçonaria e tive a PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado] em casa.
Teve a PIDE em casa porquê?
Sim, foi na pista de uns livros que o Tomás da Fonseca guardava lá. Os livros nunca foram recuperados, não sei para onde a PIDE terá mandado aquilo, deve ter destruído. Eram coisas a desmentir Fátima – um dos livros foi reeditado depois do 25 de Abril. Coisas daquele tempo. De maneira que eu conhecia os dois lados e ia temperando. Por isso é que quando me perguntavam de que lado estava, a verdade é que nunca cheguei a fazer o balanço. Havia coisas de que eu gostava de um lado e de outro e coisas de que eu não gostava também de ambos os lados.
Trocou a diplomacia pelos bancos, mas manteve uma ligação, deu aulas de História Diplomática no ISCSP. O que tentou ensinar aos seus alunos, acima de tudo?
Procurei que eles pensassem. Porque é isso que não se faz hoje, pensar. Ou faz-se pouco. As pessoas, em Portugal, raramente pensam, papagueiam. Papaguear é um vício do nosso ensino. Os ingleses, por exemplo, fazem ao contrário, usam o judgment, discernimento. Até na aposta do futebol. Mas é por isso que nós vivemos nas nuvens...
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