"Se fosse filha de um amigo, conhecido ou familiar, de certeza que não quereria que acabasse numa instituição", diz ao SAPO24 Moisés Andrade, de 44 anos, residente na Lourinhã. É pai de três crianças, mas desde há três anos tem recebido em casa alguém que "só precisa de atenção".

Moisés viveu de perto uma situação que o fez ver com outros olhos o papel de uma família de acolhimento e desde então tenta reduzir o número de crianças à espera de uma "solução para a sua vida".

"Antes de avançarmos, eu e a minha mulher [Natália], estivemos algum tempo a pensar como deveríamos explicar este processo aos nossos filhos, sobretudo à Clara e ao Daniel, que na altura tinham 8 e 12 anos, respetivamente"Moisés Andrade

"Um familiar próximo viu o filho ser institucionalizado porque não tinha condições para o criar. Foi muito duro perceber a dor de um pai, mas também da criança, sobretudo dela. Não teve ninguém para a receber em casa, sobretudo porque é um processo burocrático", diz Moisés, referindo também que a decisão em entrar neste processo de acolhimento teve também uma preparação em casa.

"Antes de avançarmos, eu e a minha mulher [Natália], estivemos algum tempo a pensar como deveríamos explicar este processo aos nossos filhos, sobretudo à Clara e ao Daniel, que na altura tinham 8 e 12 anos, respetivamente. A Alice era ainda uma bebé, não seria estranho para ela receber alguém em casa. Mas para os dois sim. Explicar que poderiam ter alguém em casa não era difícil, mas explicar que poderia ser alguém temporária, isso sim, mais complicado", diz Moisés para explicar como gerem esta situação.

"O mais importante é não esquecer que a criança não é nossa, não é um processo de adoção. Ser família de acolhimento é preparar alguém, com amor, para a próxima fase da sua vida e é isso que fazemos desde o primeiro momento. Só queremos dar um lar a alguém que de momento está afastada da sua família. Ninguém quer estar numa instituição. Não é que hajam maus tratos, desvalorização, mas não deixa de ser uma instituição. As crianças, mais novas ou mais velhas, preferem um lar, qualquer que seja. Se for um bebé não estranhará, se for mais velha há um processo mais complicado, mas quando lhes é explicado que poderão ir para uma casa em vez de uma instituição todas preferem. Aliás, mesmo as famílias que sabem que os seus filhos poderão passar por uma situação destas preferem que estejam ao cuidado de famílias, esta pelo menos é a nossa experiência", refere.

Escutar o bullying para travar a violência
Escutar o bullying para travar a violência créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

O professor secundário recebeu a primeira criança em 2021, "após um processo que demorou ainda alguns meses", mas antes mesmo disso os seus mais próximos questionavam-no com aquela que é a pergunta que as famílias de acolhimento mais escutam: "E se se apegarem demasiado às crianças?"

"O mais importante é não esquecer que a criança não é nossa, não é um processo de adoção. Ser família de acolhimento é preparar alguém, com amor, para a próxima fase da sua vida"

"É uma pergunta legítima e ninguém irá dizer que não se apega. Eu aprendi a amar as que recebi, porque é isso que damos casa, amor. Mas sabemos que é uma fase de transição, isso é que tem de ser trabalhado antes de se avançar para um processo destes. Sabemos que estamos a dar um lar transitório e se ficarmos sem as crianças bastante cedo, ficamos felizes, pois sabemos que o seu processo avançou. Quanto mais tempo ficar, pior é para a criança, é sinal que o seu futuro não está a ser acelerado. Mas essa pergunta, para nós, tem sempre a mesma resposta: 'Não temos medo de ficarmos apegados, queremos ficar, mas queremos também que elas regressem às suas famílias", refere Moisés, que até foi convidado pela mãe da primeira criança que recebeu para ser seu padrinho.

"Sentimentos? É uma pergunta legítima e ninguém irá dizer que não se apegam. Eu aprendi a amar as que recebi, porque é isso que damos em casa, amor. Mas sabemos que é uma fase de transição"

"Fiquei muito sensibilizado. Uma coisa que nunca deixamos de fazer é tentar de alguma forma cortar, até porque não é possível, as relações com as famílias de origem. No processo, que é um processo, há sempre contacto com as mesmas, organizamos visitas às famílias, há uma proximidade, isto é ser família de acolhimento, muitas pessoas, infelizmente, não sabem como é o processo, daí resultam muitas das questões que têm. Muitas confundem mesmo acolhimento com adoção", afirma Moisés, abordando a questão de, em Portugal, as famílias de acolhimento não possam adotar.

"Quando avançamos para este processo sabemos logo à partida que não o podemos fazer, mas avançámos na mesma. É uma lei, como qualquer outra. E como qualquer outra também podem ser mudada. Eu não vejo razão para que uma adoção não possa acontecer, até acho que assim as instituições veriam se as pessoas estão capacitadas ou não para adotar. Em vários países isso é legal, por isso não vejo razão para essa medida não ser alterada", diz.

Em Portugal, por enquanto, também não há prazos para que haja uma decisão definitiva quanto a uma criança que foi institucionalizada, ao contrário, por exemplo, de Espanha, onde dois anos é o limite. Moisés considera essencial mudar esse aspeto.

"Tem de ser mudado urgentemente. Uma criança não pode ter o seu destino refém por demasiado tempo, tem de existir uma decisão célere, seja ela qual for, seja de reintegração no seu antigo lar, com um familiar ou para adoção. Qualquer que seja, tem de ser rápido. As crianças são aquelas que mais sofrem, demonstrem ou não. São precisas mudanças rápidas, alguma coisa tem de mudar", conclui.

walking in step with child strollers
walking in step with child strollers créditos: EPA; Felix K

Governo quer mais famílias de acolhimento e anuncia revisão das leis

Portugal tem 356 crianças em famílias de acolhimento, um número “bastante residual”, face ao total de crianças institucionalizadas, e que o Governo pretende ver aumentar em resultado da nova campanha nacional pelo acolhimento familiar, apresentada em novembro e que terá a duração de um ano.

“O objetivo da campanha é sensibilizar para a necessidade de termos mais famílias de acolhimento e não só sensibilizar, mas também informar”, adiantou a secretária de Estado da Ação Social e da Inclusão, em declarações à agência Lusa.

A secretária de Estado afirmou que com a campanha o Governo espera aumentar o número de crianças acolhidas em famílias e “dar um salto relativamente a estes 4,1% que é atualmente a percentagem das famílias de acolhimento”, mas não se comprometeu com nenhuma meta.

“Atualmente temos mais de 6 mil crianças institucionalizadas, das crianças que têm medidas de colocação, e o nosso objetivo é diminuir consideravelmente estas crianças que estão atualmente em acolhimento residencial e aumentar com isso o acolhimento familiar”, defendeu, salientando “os efeitos para o desenvolvimento integral e saudável da criança”.

A secretária de Estado disse ainda que o Governo tem um grupo de trabalho que irá, até ao dia 30 de novembro, avaliar as três estratégias que se prendem com os direitos das crianças e apresentar orientações sobre o possa vir a ser melhorado.

"Em devido tempo, vamos revisitar o regime jurídico do Acolhimento Familiar e analisar se é preciso introduzir alguma afinação, regulamentação para tornar o regime mais atrativo, mais fácil e menos burocrático para atrair mais famílias de acolhimento. No segundo ponto, vamos para o terreno”, disse.

Seguir os passos de Moisés

O que é o Acolhimento Familiar?

O Acolhimento Familiar é uma medida de promoção e proteção de caráter temporário, decidida pelos tribunais ou pelas comissões de proteção de crianças e jovens, que consiste na atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, visando a integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao desenvolvimento integral.

Quem são as crianças e jovens que precisam de uma família de acolhimento?

Qualquer criança ou jovens a quem foi aplicada uma Medida de Promoção e Proteção, em consequência de se encontrarem numa situação de perigo, n.º 2 do artigo 3.º da Lei de proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

Uma situação de perigo pode ser, entre outras, quando a criança:

  • Está abandonada ou vive entregue a si própria;
  • Sofre maus-tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
  • Não recebe os cuidados ou a afeição adequada à sua idade e situação pessoal.

Como pode ser uma família de acolhimento?

Os interessados em ser família de acolhimento, deverão participar numa sessão informativa da responsabilidade de uma instituição de enquadramento da sua área de residência, onde será disponibilizada toda a informação necessária sobre o processo de candidatura. Só depois é que se pode formalizar a candidatura a família de acolhimento.

Posteriormente, os candidatos devem passar por um processo de avaliação que inclui entrevistas, verificações de antecedentes, avaliação psicológica e participação em cursos de formação. Além disso, é fundamental que a família tenha condições financeiras estáveis e um ambiente seguro para receber a criança.

Podem ser família de acolhimento, independentemente do estado civil, orientação sexual ou religião:

  • Uma pessoa singular;
  • Duas pessoas casadas entre si ou que vivam em união de facto;
  • Duas ou mais pessoas ligadas por laços de parentesco e que vivam em comunhão de mesa e habitação.

Para ser uma família de acolhimento precisa de reunir as seguintes condições:

  • Ter mais de 25 anos;
  • Não ser candidato à adoção;
  • Estar em condições físicas e mentais, validadas por um médico;
  • Ter uma habitação com todas as condições que são precisas para o acolhimento de crianças e jovens;
  • Cuidar da criança ou jovem sem qualquer tipo de limitação ou proibição;
  • Não ter qualquer tipo de indício ou problema com a justiça.
famílias de acolhimento
famílias de acolhimento créditos: Segurança Social

Quais os documentos necessários?

Juntamente com a sua candidatura, deve apresentar os seguintes documentos:

  • Comprovativo do número de identificação civil, fiscal e SS;
  • Declaração de residência do agregado familiar;
  • Atestado médico que comprove o seu estado de saúde;
  • Última declaração anual de rendimentos ou outro documento para o efeito;
  • Registo criminal do responsável pelo acolhimento familiar e dos restantes elementos do agregado maiores de 16 anos;
  • Declaração, sob compromisso de honra, em como nenhum dos elementos do agregado apresenta qualquer impedimento para o exercício das responsabilidades parentais para com os seus filhos;
  • Declaração, sob compromisso de honra, em como o responsável do acolhimento não é candidato à adoção;
  • Comprovativo de frequência de sessão informativa, ou da dispensa da mesma.

Avaliação da candidatura

A avaliação da candidatura tem como base um estudo feito à família de acolhimento que inclui:

  • Visitas ao domicílio;
  • Entrevistas;
  • Análise de outros fatores que possam ajudar a conhecer melhor o ambiente familiar.

Assim, as competências a verificar são:

  • Tempo para cuidar da criança ou jovem;
  • Ter estabilidade financeira, emocional e social;
  • Ter a aceitação por parte dos restantes elementos do agregado;
  • Disposição para colaborar com todos os intervenientes, incluindo a família de origem;
  • Vontade para ir às formações;
  • Ter boas condições de habitação, higiene e segurança.

Tipos de acolhimento

Não existe um prazo definido. Ou seja, a duração do acolhimento depende da decisão do Tribunal ou da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Ainda assim, será sempre tido em conta a melhor solução de vida para a criança.

O acolhimento, dependendo da situação e do plano definido pelas autoridades competentes, pode ser:

  • Temporário;
  • Urgente;
  • Curta duração;
  • Longa duração (máximo de seis anos).

Apoios e benefícios para a família de acolhimento

A família de acolhimento tem direito a apoios de natureza pecuniária, psicopedagógica e social.

O apoio pecuniário consiste na atribuição, à família de acolhimento, de um subsídio mensal destinado a assegurar a manutenção e os cuidados a prestar à criança ou jovem, cujo montante corresponde a 1,2 vezes o valor do indexante dos apoios sociais, Em 2024, este subsídio tem o valor de 611,11€ (1,2 x 509,26€), o qual é acrescido de uma majoração de 15%, por cada criança ou jovem acolhido, quando se trate de:

  • Crianças até 6 anos de idade;
  • Crianças ou jovens com deficiência e/ou de doença crónica, devidamente comprovada.
    Valor do IAS = 509,26 €

Os apoios a que a criança ou jovem tenha direito, a nível de saúde, educação e apoio sociais, nomeadamente abono de família, devem ser requeridos às entidades competentes.

A família de acolhimento tem igualmente direito a:

  • Benefícios fiscais (deduções no IRS);
  • Direitos laborais (faltas para assistência à criança ou jovem, licença parental no caso de
    acolher crianças até 15 anos de idade.