A conversa começou com as intervenções dos representantes da organização e com a transmissão de um vídeo de Volker Turk, alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, seguindo-se de uma mesa redonda sobre a integração de migrantes. Mas a atenção foi para o testemunho de Ghalia.
A sala permaneceu em silêncio para ouvir a sua história. Há 11 anos Portugal recebia uma das primeiras famílias refugiadas. Ghalia, a mãe, fugiu de Damasco porque o marido tinha sido preso e torturado por se insurgir contra o regime. Consigo trouxe a mãe, de 70 anos, e dois filhos, um com oito anos e outro ainda na barriga. Ghalia conta que, ao chegar a Portugal, foi descriminada. “Fui tão mal tratada por causa da minha religião que perdi a gravidez no primeiro dia”.
Antes de chegar a Lisboa, viveu na Nigéria e no Gana, onde o marido trabalhava. “Em 2011 perdemos o negócio no Gana porque a economia entrou em colapso, e fomos obrigados a voltar para a Síria”. A guerra da Síria tinha acabado de começar e a família de Ghalia foi uma das milhares afetadas pela ditadura de Bashar al-Assad. “O meu marido estava ativo contra o regime. A primeira vez que digo isto em público sem ter medo. Alguns meses depois da nossa chegada ele desapareceu. Foi detido, torturado”.
No momento em que conseguiram fugir do país natal, Ghalia e o marido perceberam que “com os passaportes sírios era impossível ter visto para qualquer país, até para os países árabes”. Os primeiros “fecharam as fronteiras na nossa cara”, e só com a compra de passaportes falsos, que, segundo a oradora, custaram “35 mil euros”, conseguiram iniciar a viagem de Gana até à Suécia, o destino que tinham previsto.
Ghalia dirige-se ao público para reforçar que “qualquer pessoa que chegue cá paga aos traficantes entre seis e dez mil euros”, ao invés de pagarem aos países europeus que “investem para fechar as fronteiras e deixam este dinheiro ir ter ao lado errado”.
No caminho, a família de Ghalia teve de fazer escala em Lisboa e, assim que entraram no país, foram detidos. Sem apoio na tradução, são obrigados a assinar papéis escritos em português: “descobrimos no final do dia que era um pedido de asilo, mesmo depois de pedirmos para voltar para o Gana”. Além disso, quando Ghalia é sujeita a uma situação de xenofobia e perde o bebé, não lhe é dado apoio médico, sendo ainda obrigada a ficar quatro dias no centro de detenção.
Na chegada a Portugal, o primeiro choque foi “a falta de preparação da linha na frente”, conta. A burocracia era tanta e a barreira linguística tão difícil que se tornava impossível perceber os procedimentos e ler a lei. Os serviços de imigração “complicam muito os passos de integração no novo país”, tanto no registo fiscal, na segurança social, no acesso à saúde, à vacinação e na inscrição na escola, entre outras dificuldades mencionadas.
À medida que Ghalia revisitava as suas memórias, ficava mais emocionada e a sua respiração parecia tornar-se mais difícil. Em entrevista ao SAPO24, António de Almeida-Ribeiro, representante da Centro Internacional para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID), mostrou-se “verdadeiramente tocado” com o testemunho “emocionante, que nos deve mobilizar e fazer refletir sobre a nossa própria atuação: Só podemos dar-lhes a mão e não fazer outra coisa diferente”.
A intervenção como meio para a inclusão
Facilitar estes processos no momento de integração destas famílias em Portugal é a principal missão das organizações envolvidas na promoção do festival. A sua atividade vai desde a promoção do diálogo interreligioso, à criação de grupos de apoio a migrantes em Portugal, com o objetivo final de “enriquecer as sociedades, cada vez mais multiétnicas, multireligiosas e multiculturais, e libertá-las do ódio e do medo”, declara o representante da KAICIID.
Isabel Silva, em representação da ONG MEERU, contribuiu para discussão com a sua experiência na cidade do Porto, ao explicar o modo de atuação da equipa. “No terreno notamos que há estratégias de integração que expulsam mais do que integram. Não podemos exigir que imitem uma massa populacional portuguesa que não existe”.
Os ritmos, culturas e manias são diferentes de pessoa para pessoa, e, por isso, “a integração tem de ser feita dessa forma”. Assim, Isabel Silva lembra a importância de apoiar os migrantes em todos os momentos, desde entrevistas de emprego, trabalhos de casa, ou a consultas, “garantido especialmente que têm com quem celebrar as coisas boas”.
De acordo com António de Almeida-Ribeiro, “são necessários maiores investimentos políticos, culturais e económicos para aproveitar os benefícios da diversidade. Todos os grupos merecem que as suas identidades individuais e os seus direitos humanos sejam respeitados e que sejam tratados como membros valiosos de uma sociedade sem discriminação”. Em entrevista ao SAPO24, lembra que esse esforço deve ser transversal a todo o país para que “todos, em conjunto, autoridades, sociedade civil, instituições, possam cooperar e rapidamente apoiar a integração destas pessoas que chegam ao nosso país em número cada vez crescente”.
Segundo António Ribeiro-Almeida, “Portugal tem este fenómeno há relativamente pouco tempo e não pode ser resolvido de um dia para o outro”. Nos últimos cinco anos, a percentagem de população migrante que reside no nosso território cresceu para 10%. “Portanto, muito longe de uma tecnologia de invasão como, infelizmente, temos ouvido falar várias vezes”, sublinha Vasco Malta.
A nível mundial, apenas 3,6% da população corresponde a pessoas migrantes, o que significa que 90% da população mundial não é ou não foi migrante. Isto não significa, no entanto, que há obviamente comunidades, postos de fronteira, países, que num curto espaço recebem, efetivamente, muitas pessoas, esclarece o chefe da OIM Portugal. António Almeida-Ribeiro refere o Pacto para o Futuro, adotado pelo Estados Membros da ONU, que surge no sentido da resolução deste problema, “para reforçar as parcerias internacionais e a cooperação mundial em prol de uma migração segura, ordenada e regular”.
O debate sobre migração é frequentemente atormentado por perceções preconceituosas. Ghalia lida com as consequências da propagação desse discurso todos os dias: “O meu filho enfrentou muitos casos de descriminação, chamavam-lhe muçulmano terrorista, sírio refugiado”. A principal dificuldade é saber “a quem fazer queixa”.
Além disso, defende que a existência de “uma plataforma de confiança que dá as informações necessárias para os refugiados resolverem os seus problemas e terem oportunidades de trabalho” faz muita falta. De acordo com Vaso Malta, essa integração tem de ser feita a vários níveis, “a nível do emprego, da habitação, da educação, e da discriminação”.
“É preciso mudar a narrativa”
Ghalia conversou com o SAPO24 sobre possíveis soluções para auxiliar a vida destas famílias. A questão começa com a “mudança da narrativa”. “Os média tem de dar mais voz a esta gente, conhecer a realidade desta gente, e não se focar só na guerra, nos terroristas, etc. Estes números têm nomes, são vidas, são pessoas reais, e têm pouca oportunidade de falar por elas próprias”.
Além disso, durante o painel, defende que “hoje, mais do que nunca, é preciso urgentemente um plano com uma estratégia bem clara” e com impacto “a nível nacional”. Para isso, propõe criar “espaços de apoio direto, como fazem as câmaras municipais”. Mudar a narrativa, para Ghalia, signifca “convidar os líderes de refugiados para estar na mesa no momento de decisão, dar-lhes voz”.
O exercício apresentado pelo Teatro do Imigrante na segunda parte do festival, “Na Boca do Tubarão”, encenou uma viagem num barco insuflável de refugiados de guerra. A mensagem é a mesma de todo o evento: “promover a narração de histórias para fomentar um espaço europeu inclusivo onde todos possam ter um profundo sentimento de pertença”, explica António Almeida-Ribeiro.
A peça de teatro introduziu a exibição do filme “The Old Oak”, de Ken Loach, um drama britânico sobre a integração de refugiados sírios numa pequena comunidade do nordeste da Inglaterra. "Todas as religiões querem duas coisas, a paz e a promoção da dignidade humana. Isto é comum a todas as interpretações verdadeiras das religiões e, portanto, temos de fazer um esforço, todos nós, não apenas na cidade principal, na capital ou nas grandes cidades, há que ir muito mais além", declara.
Como está a família de Ghalia agora?
Fluente em português, Ghalia Taki é agora oficialmente Ghalia Maria Taki. Está completamente integrada em Portugal e “muito contente”. "Nunca soube o que era integração antes de vir para aqui", diz, "ter oportunidade de desempenhar um papel ativo na sociedade é a melhor forma de integração".
Com os olhos a brilhar, confessa que “sempre tive muito orgulho na minha identidade, mas, hoje, mais do que nunca, estou orgulhosa e aceito os parabéns”. Sobre a conquista da independência da Síria, espera “ter um futuro melhor daqui para a frente e que o povo consiga construir outra vez o país pelas suas mãos”.
Ao SAPO24, diz lamentar o aumento da discriminação e do preconceito, não só em Portugal, mas em toda a Europa. “É muito estranho para mim como o país número um na Europa que mais produz imigrantes, um povo que por cada família tem um ou mais imigrantes a viver fora para melhorar as suas condições económicas, e não para salvar a sua vida, como no nosso caso, como é que consegue pensar desta maneira?”
Termina com uma pergunta dirigida a todos os voluntários, migrantes e participantes do festival: “ quando chegarem a casa, pensem nisto, se fossem vocês, e não nós, a sofrer o que estas pessoas sofreram, como reagiam?”. Na verdade, “não interessa a cor, a religião ou a cultura no final, somos seres humanos. Por favor, não se esqueçam disso”.
O encontro surgiu para celebrar o Dia Internacional do Migrante, “que é todos os dias”, lembra Vasco Malta, chefe de missão da Organização Internacional para as Migrações (OIM) Portugal. Articulando o cinema e a conversa, procurou-se incentivar a “conexão de culturas e despertar empatias” e, através de um ecrã, “unir várias pessoas de países e continentes diferentes”.
*Reportagem multimédia da jornalista estagiária Ana Filipa Paz editada pela jornalista Ana Maria Pimentel
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