*Reportagem de Carlos Picassinos, 7/Margens, nas Filipinas
“Ah Magallanes é português?!” Maria, e o filho Michael, passeiam sob o sol do meio dia no Altar da Liberdade. É um perímetro com aspeto de Luna Parque ajardinado, onde se ergue a estátua de bronze do chefe nativo Lapu Lapu, o obelisco oitocentista de Magalhães, além do mural examinado por Maria e o filho Michael.
“Pensávamos que era espanhol!!”, largam uma gargalhada ingénua perante o óbvio equivoco histórico. Equivoco sim, óbvio nem por isso. No jardim, as placas informativas sobre os acontecimentos de há quinhentos anos são pouco mais que laudatórias. Em nenhum local referem o nascimento do português, apenas a morte. “Neste lugar, morreu a 27 de Abril de 1521 ferido num encontro com soldados de Lapu Lapu”, o chefe de Cebu, recordado na estátua cintilante do novo herói nacional.
Nação e devoção
Aqui, Magalhães toma o nome inglês Magellan ou o castelhano Magallanes, se alguém sequer reparar numa das faces daquele obelisco mandado erigir, em 1866, nos últimos anos do reinado, por Isabel II a esse “Hernan de Magallanes”, pelas “glórias de Espanha”.
Mas conhecer as origens nacionais do navegador é pouco mais do que uma curiosidade ou uma bizarria, para quem decida deslocar-se a Punta Engano, na periferia de Macatan, o ilhote em frente a Cebu. Ou uma peregrinação íntima. Sobretudo para católicos ou amantes de história. São precisas horas de desespero para suportar o trânsito dos jeepney – o transporte público coletivo, herança americana da II Guerra Mundial – que, como insetos, devoram a estrada larga.
Michael e Maria fazem-no por devoção. Voaram de Luzon, na parte setentrional do arquipélago das Filipinas, de propósito, para conhecer a estátua de Lapu Lapu – vitoriosa e brilhante por causa da operação de limpeza, da passada primavera – e o obelisco de Magallanes. “Então Portugal não é Espanha?”, inquirem, ainda.
De memória, mãe e filho declinam as respetivas lições dos bancos de escola sobre o confronto com a expedição. “Magalhães chegou a Mactan para conseguir amizades entre os nativos, para troca de bens”, começa Maria, “mas talvez tenha havido qualquer coisa que ocorreu mal”, hesita, atrás do leque. “Talvez não gostassem de estar a ser invadidos pelos espanhóis”, atira, sempre entre risos.
Michael tenta a sua versão. “Houve uma grande batalha entre os dois chefes, Magalhães e Lapu Lapu. Foi tão grande que Magalhães foi morto. E foi a primeira vez que os espanhóis saíram derrotados. Mas também é verdade que também foram eles que trouxeram a Cristandade ao país, aqui em Cebu”, como que a rebater quem minimiza o papel de Magalhães. “Para mim, era importante fazer esta visita”.
O perímetro do renovado Altar da Liberdade está quase deserto. Junto ao obelisco, as inúmeras tendas de feira aguardam os poucos turistas que não chegam. Nos expositores, acumulam-se a bijutaria de artesanato marinho, fancaria de naus, Lapus Lapus e Magalhães. Crianças correm por entre os arbustos e o pequeno pátio, junto ao mural da batalha de Mactan. Brincam por entre a água das fontes que, a esta hora, desmaia, quente, na relva.
Debaixo das escassas árvores, um grupo de mulheres está sentado na placidez de um banco de madeira. Reúnem-se ali todos os dias. Testemunhas de Jeová, conforme explica o único homem que as acompanha. Isha é motorista de táxi. Está entre viagens e vai explicando que Lapu Lapu “é um orgulho para os filipinos porque foi o primeiro a levantar-se contra um invasor europeu”.
Mais à frente, um carreiro de chineses congrega-se em volta da guia turística. “Sim, era português”, confirma Bea, a guia, admirada com o insólito de um jornalista da mesma nacionalidade de Magalhães. Depois desdobra-se a falar das incertas versões que se multiplicam acerca do destino do navegador. “Há quem diga que foi aqui enterrado mas houve depois, alguém, que acabou por vir desenterrá-lo e roubar o corpo”. Enfim, “não se sabe muito bem”, não houve testemunhas.
Duterte e a “luta contra os padres”
Rodrigo Duterte sabe. Sabe que foram séculos de abusos sobre os filipinos. Sabe que invadiram e colonizaram. Sabe que exploraram. Não sabe é das razões para festejar. O presidente filipino não compreende a razão para celebrar, em 2021, os quinhentos anos da chegada do invasor-colonizador-explorador e, acrescenta, imperialista, Magallanes. “Porque é que haveríamos de festejar a chegada dos espanhóis?”, lançou num comício, entre os seus, no início do mês, em Cebu.
O controverso presidente fala desabrido. Diz que não pretende “comprar uma luta com os padres” mas que “está zangado com o que se passou há séculos”. Pelos padres, refere-se à Conferência Episcopal Filipina que tem em marcha um programa de comemorações dos cinco séculos de evangelização de um dos países mais fervorosamente católico do Pacífico.
Se assinalou a chegada da Cristandade, “marcou também o início da escravidão”, argumentou ainda Duterte. “Vieram ao nosso país como imperialistas e, durante trezentos anos, estivemos subjugados”. “A luta com os padres” já vem de trás. À boleia dos abusos sexuais na Igreja Católica, Duterte aplicou-se a lançar vulgares impropérios contra a figura dos bispos para rentabilizar a amargura dos fiéis e a desconfiança de todos. “Posso dizer que estamos alegres por terem vindo mas foram também eles que mataram figuras das Filipinas como [José Protázio] Rizal [proeminente nacionalista filipino do século XIX] e [André] Bonifácio”, revolucionário na origem do movimento que daria a independência às Filipinas.
Pablo Virgilio David, bispo de Kalookan, junto a Manila, veio a terreiro dizer que os filipinos são “suficientemente inteligentes” para saber distinguir cristianismo e colonialismo. Para que fique claro: “O que vamos celebrar, em 2021, não é o colonialismo mas a fé cristã que os nativos destas ilhas receberam como um dom, embora de gente que não se movia pelas mais puras das motivações”, disse, com subtileza.
O bispo admite que a chegada dos espanhóis às Filipinas semeou divisões, mas a divisão “nem sempre é uma coisa negativa”. “As pessoas esquecem que a unidade tem também aspetos negativos – especialmente quando o que as une tem ímpias motivações”.
Um peixe-herói
A suspeita de Duterte não trata apenas de armadilhar a influência da Igreja Católica. Pretende, sobretudo, contagiar o poder aristocrático das famílias dominantes da vida pública filipina. Através da utilização política da figura histórica de Lapu Lapu, Duterte procura confirmar-se como “o presidente do povo”. E a construção de um herói popular da resistência nativa por oposição ao santo branco esclavagista e colonizador serve o relato às mil maravilhas.
No ano passado, em Manila, o Senado inclinou-se à estratégia do presidente. Aprovou legislação a proclamar Lapu Lapu como “o primeiro asiático que derrotou Magalhães”. Por lei, Lapu passou a ser um herói quando, por séculos, foi sobretudo associado a uma espécie de peixe local, uma garoupa vermelha. O senador que avançou com a proposta admitia que talvez fosse bom deixar de identificar Lapu com a garoupa e elevá-lo a outra condição.
A lei proclamou, por isso, 27 de abril como dia nacional de Lapu-Lapu. Mas, bem antes da lei, a tradição local já encenava, todos os anos, o teatro da batalha de Mactan. Por estes dias, as estradas que circundam o Altar – e isolam os resorts de turistas japoneses dos bairros de lata dos filipinos locais – estão pontuadas por imagens do herói nativo. São cores mil e há cheiro a festa como, em Portugal, no Agosto dos imigrantes.
Presos ao mural, Michael e a mãe vão desabafando argumentos: “Mas foi ele que trouxe o Cristianismo ao nosso país, e foi aqui em Cebu. Lapu Lapu era só o chefe de uma tribo”. Michael hesita, apesar de tudo, entre as duas figuras. “Acho que os filipinos gostam dos dois. Mas foi através do europeu Magalhães que conhecemos o Cristianismo e o catolicismo”. “Sim, somos católicos”, insiste Maria, que acrescenta: “Também temos sangue espanhol. Somos mestiços”.
Fotografia: Mural no Altar da Liberdade, em Mactan (Cebu, Filipinas), representando o momento em que Lapu Lapu vai matar Fernão de Magalhães / Carlos Picassinos
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