O diploma, que consagra os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos no ciberespaço, entre os quais “selos de qualidade” para informação considerada verdadeira por “entidades fidedignas”, foi aprovado por maioria no parlamento em 08 de abril e resultou de dois projetos, do PS e do PAN, que apresentaram um texto comum, discutidos em plenário em outubro de 2020.
Em 08 de maio, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou a lei, a qual foi publicada em Diário da República em 17 de maio e a partir daí instalou-se a polémica em volta do artigo 6.º sobre o direito à proteção contra a desinformação, com partidos e figuras políticas a considerarem que este poderia instituir uma espécie de censura.
O polémico artigo, que a Iniciativa Liberal e o CDS-PP querem ver revogado, refere que o Estado “assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”.
Nesse sentido, o “Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.
O artigo em causa refere também que “todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) queixas contra as entidades que pratiquem” desinformação.
Em 08 de junho, Marcelo Rebelo de Sousa afastou a ideia de que o artigo instituísse por parte do Estado qualquer forma de censura e sublinhou que a lei tinha sido aprovada “praticamente por unanimidade”.
“Seria grave se o Estado fizesse censura, seria mesmo intolerável, e seria intolerável que, mesmo não fazendo censura prévia, fizesse censura a posteriori. Eu nunca promulgaria um diploma desses, passei toda a minha vida a defender a liberdade de imprensa, nunca o promulgaria”, declarou Marcelo Rebelo de Sousa, na altura.
Segundo o Presidente da República, “nos termos em que existe o artigo 6.º, pode-se achar que é mais bem escrito ou mais mal escrito, que é mais feliz ou menos feliz, mas censura não tem”, referiu, salientando que a seu ver “não tem nada de inconstitucional”.
Entretanto, em 01 de julho, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) anunciou que tinha remetido à provedora de Justiça e à Procuradora-Geral da República um documento “através do qual se peticiona que seja requerida ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade e da legalidade do artigo 6.º da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital”.
No documento, a CCPJ salienta que “não parece realmente haver dúvidas quanto ao efeito restritivo — podendo mesmo falar-se em violação do direito fundamental à liberdade de expressão — resultante de diversas disposições da Carta de Direitos Humanos na Era Digital, particularmente no que concerne a todo o conjunto normativo do artigo 6.º, ora por remissão indevida para um Plano de Ação contra a Desinformação, que nem sequer é um texto normativo, ora por introdução de controlos a posteriori arbitrários, irrazoáveis e incompatíveis com o caráter matricial da liberdade de expressão, ora por violação manifesta do princípio da determinabilidade da lei, enquanto decorrência do princípio do Estado de Direito democrático e do princípio da reserva de lei”.
Também o Sindicato dos Jornalistas (SJ) tinha requerido a constitucionalidade da norma, que considera que deverá ser retirado o teor do artigo e repensada a forma de proteção contra a desinformação.
No entanto, o tema não reúne consenso entre especialistas e alguns hesitam considerá-la um “regresso à censura”.
Recentemente, em declarações à Lusa, o constitucionalista José Carlos Vieira de Andrade considerou que “os termos em que a Carta está redigida, sobretudo por utilizar conceitos indeterminados, pode levar, de facto, a uma restrição da liberdade de expressão”.
Apesar de não ser comparável “em termos perfeitos com a ditadura de 1926 vivida em Portugal, este artigo pertence à família das censuras”, apontou o constitucionalista.
Já para Carlos Magno, jornalista e antigo presidente da ERC, é importante discutir a desinformação, mas “não se pode legislar o digital com pensamento analógico, porque tem regras e características próprias”.
O jornalista criticou a unanimidade aquando da aprovação do documento e defendeu que a função do regulador é dar confiança aos cidadãos através da certificação permanente daquilo que é publicado.
Também para o jornalista e investigador em comunicação digital Miguel Crespo as críticas à Carta foram tardias, o que revela alguma desvalorização do tema no parlamento.
Miguel Crespo classificou o artigo 6.º como um “perfeito disparate” porque obriga a estarem registados na ERC os meios produtores de ‘fake news’, que ao mesmo tempo poderão verificar, também eles, o conteúdo falso.
“A partir do momento em que se põe em causa a avaliação dos conteúdos, em que se quer discriminar o que é fidedigno do que não é, em que uma entidade aceita registos de meios comprovadamente de desinformação e é juiz do que é informação ou não, é um texto que facilmente passava como lei em qualquer regime ditatorial”, salientou Miguel Crespo.
O antigo ministro da tutela dos media e professor universitário Miguel Poiares Maduro afirmou que “a Carta tem aspetos positivos, mas a forma como está redigido o artigo 6.º é infeliz e abre a porta a leituras perversas, como a de que a ERC passa a ser o que define o que é verdade do que é mentira”.
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