Há vinte e cinco anos, publiquei o meu primeiro livro. Intitulava-se O Ponto de Viragem: de como as pequenas coisas fazem uma grande diferença. 

Naquela altura, tinha um pequeno apartamento no bairro de Chelsea, em Manhattan, e passava as manhãs sentado à secretária, de onde vislumbrava o rio Hudson ao longe, a escrever, antes de ir para o trabalho. Como nunca tinha escrito um livro, não tinha uma ideia muito clara sobre como fazê-lo. Escrevia com aquela mistura de insegurança e euforia que é típica de um estreante. 

«Este livro é a biografia de uma ideia», começava eu, «e a ideia é muito simples:»

A melhor maneira de compreender a emergência de tendências de moda, as marés e contramarés dos índices de criminalidade ou, do mesmo modo, a transformação de livros ignorados em sucessos de vendas, a subida do tabagismo entre os jovens, ou o fenómeno do boca-a-boca, ou ainda quaisquer outras mudanças misteriosas que marcam a vida diária, é pensar nelas como epidemias. Ideias, produtos, mensagens e comportamentos espalham-se exatamente como os vírus.

O livro foi publicado na primavera de 2000 e o primeiro evento na sua campanha de promoção foi uma sessão de leitura numa pequena livraria independente em Los Angeles. Vieram duas pessoas, um desconhecido e a mãe de um amigo meu – mas não o meu amigo (já lhe perdoei). Lembro-me de pensar, pronto, acabou-se. Mas não tinha acabado! O Ponto de Viragem cresceu como as epidemias que o livro descrevia – ao início de forma lenta e depois numa torrente. Quando saiu a edição de capa mole, já tinha entrado no zeitgeist. O livro esteve vários anos nas listas de bestsellers do New York Times. Bill Clinton referiu-se à obra como «o livro de que toda a gente tem estado a falar». A expressão «ponto de viragem» passou a fazer parte do vernáculo. Lembro-me de dizer, a brincar, que podiam escrever aquela frase na minha lápide. 

Francisco Mota Saraiva junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de abril, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "Morramos ao menos no Porto", publicado pela Quetzal.

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"Morramos ao menos no porto" pediu o título emprestado a Séneca e venceu o Prémio José Saramago no final de 2024. É "um romance que abala os fundamentos da narrativa clássica, um fogo que alastra até consumir todas as suas personagens e que revela o seu autor como uma voz poderosa na literatura portuguesa".

Pode ler um excerto aqui.

Se me perguntarem qual é a explicação para o impacto que O Ponto de Viragem teve, não sei responder ao certo. Mas se tivesse de adivinhar, diria que se deveu a ser um livro esperançoso que correspondia ao espírito esperançoso da época. O novo milénio tinha chegado. O crime e os problemas sociais estavam em queda livre. A Guerra Fria tinha acabado. O livro oferecia uma receita para promover mudanças positivas ou – como sugeria o subtítulo – encontrar maneiras de as coisas pequenas fazerem uma grande diferença. 

Vinte e cinco anos é muito tempo. Pense em como era uma pessoa diferente há um quarto de século. As nossas opiniões mudam. Os nossos gostos mudam. Preocupamo-nos mais com umas coisas e menos com outras. Ao longo dos anos, aconteceu-me algumas vezes rever o que escrevi em O Ponto de Viragem e perguntar-me como é que me lembrei de escrever as coisas que escrevi. Um capítulo inteiro sobre a Rua Sésamo e Blue’s Clues? De onde é que isso veio? Naquela altura, nem sequer tinha filhos. 

Depois haveria de escrever Blink, Outliers, David e Golias, Falar com Desconhecidos e A Máfia dos Bombardeiros. Todos os títulos foram publicados em Portugal pela editora Dom Quixote: Outliers (2008), Blink (2010), David e Golias (2014), Falar com Desconhecidos (2019) e A Máfia dos Bombardeiros (2022). Comecei o podcast Revisionist History. Juntei-me com a mulher que amo. Tive dois filhos, enterrei o meu pai, recomecei a correr e cortei o cabelo. Vendi o apartamento de Chelsea. Mudei-me para fora da cidade. Criei uma empresa de equipamento áudio com um amigo, chamada Pushkin Industries. Adotei um gato e chamei-lhe Biggie Smalls. 

Conhecem a sensação de olhar para uma imagem nossa muito antiga? Quando o faço, tenho dificuldade em reconhecer a pessoa que vejo naquela fotografia. Assim, achei que poderia ser interessante revisitar O Ponto de Viragem por ocasião do seu vigésimo quinto aniversário, para reexaminar, com uns olhos muito diferentes, o que escrevi há tanto tempo. Neste Ponto de Viragem 2.0, o escritor regressaria à cena do seu primeiro êxito de juventude. 

Porém, à medida que voltava a imergir-me no universo das epidemias sociais, apercebi-me de que não queria voltar ao mesmo terreno que cobrira em O Ponto de Viragem. Aos meus olhos, o mundo parecia demasiado diferente. Em O Ponto de Viragem, propus uma série de princípios que ajudassem a dar sentido aos tipos de mudanças súbitas de comportamentos e crenças de que é feito o nosso mundo. Ainda considero essas ideias úteis. Mas agora as minhas perguntas são outras e constato que ainda há muitos aspetos das epidemias sociais que me falta compreender.

Quando reli O Ponto de Viragem, como preparação para este projeto, dei por mim a parar a cada poucas páginas para me perguntar: «Então e isto? Como é que pude deixar isto de fora?» Percebi que, algures num recanto da minha mente, continuara sempre a manter uma discussão interior sobre a melhor maneira de explicar e compreender os pontos de viragem e os seus muitos mistérios. 

Por isso, decidi começar tudo de novo com uma folha em branco. A Vingança do Ponto de Viragem é o resultado desse exercício: um novo conjunto de teorias, histórias e argumentos sobre os trilhos misteriosos que as ideias e os comportamentos percorrem no nosso mundo. 

A grande lição que a Covid nos ensinou é que, no caso de vírus transmissíveis por via aérea, as epidemias não precisam de muitos recrutas para se propagarem. Precisa somente que um único superdisseminador, munido de algumas características fisiológicas raras, se encontre numa sala cheia de gente. A lição da crise dos opióides é idêntica. Conseguem perceber a vulnerabilidade em que nos colocou? A maioria dos médicos – a esmagadora maioria dos médicos – utilizava os analgésicos opióides como o OxyContin com a devida prudência. A comunidade médica no seu todo teve um comportamento exemplar. Foi muito sensata. Olhou para os dados e seguiu os ensinamentos do Juramento de Hipócrates: «Não administrarei a ninguém um veneno se isso me for pedido.» Mas isso não foi suficiente para nos salvar da pior crise de overdoses da história. Porquê? Porque uma fração diminuta dos médicos não foi tão cuidadosa. E essa fração diminuta foi suficiente para desencadear a epidemia. Uma vez mais, isto vai muito para além da Lei dos Poucos. Estamos no domínio da Lei dos Muito, Muito, Muito Poucos.

A crise dos opióides desenvolveu-se em três atos. O primeiro foi a decisão da Purdue de evitar os estados que adotaram a narrativa de Madden. O segundo ato começou com a interpretação diabólica que a McKinsey fez da Lei dos Poucos. Mas o terceiro ato foi talvez o mais catastrófico. Aconteceu quando as proporções dos grupos da crise mudaram. 

O capítulo final da crise dos opióides começou sem grandes alaridos. No verão de 2010, a Purdue fez um comunicado muito conciso. O velho OxyContin iria ser retirado do mercado. Seria substituído por um medicamento a que a empresa chamou OxyContin OP. O OP parecia igual. Tinha a mesma composição. Mas ao contrário da versão anterior, não podia ser desfeito em pó para ser inalado. Apresentava a consistência de uma goma. Tinha chegado ao fim o tempo em que os toxicodependentes podiam esmagar um dos comprimidos da Purdue para obter uma dose equivalente a 12 horas de efeito numa uma única toma.

Ao longo deste livro, temos falado sobre as escolhas difíceis com que as epidemias nos confrontam.  

Os superdisseminadores são desproporcionalmente responsáveis por ditar o curso de doenças como a Covid. 

O dilema dos opióides, contudo, era ainda mais complexo. Alguém teria de se ter levantado em 2010 e dito: Olhem, temos duas versões de uma droga altamente viciante. A versão original é fácil de consumir indevidamente. A nova versão melhorada, não. Mas não queremos essa nova versão melhorada. Queremos que as pessoas 

continuem a esmagar os seus comprimidos de OxyContin para os inalar, como têm feito nos últimos quinze anos. Conseguem imaginar a reação que haveria se os responsáveis da saúde tivessem adotado essa posição? «Seria uma política de prescrição de medicamentos muito maluca, não acham?

Livro: "A Vingança do Ponto de Viragem"

Autor: Malcolm Gladwell

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 22 de abril de 2025

Preço: € 22,20

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No princípio deste livro prometi-vos uma análise forense da crise dos opióides. Aqui vai. Uma pequena empresa no Connecticut decidiu revigorar uma das mais antigas dádivas das  papoilas à humanidade. Mas ainda havia um número suficiente de estados americanos sob a narrativa de Madden para evitar uma verdadeira pandemia nacional. Em vez disso, o exército de delegados de informação médica a vender OxyContin desceu sobre os estados com legislação menos restritiva, e os Estados Unidos sofreram um fenómeno de variação geográfica. A seguir, a McKinsey entrou em cena e redirecionou o marketing da Purdue para se concentrar nos superdisseminadores. Os DIM da Purdue convenceram os médicos dos grupos Essenciais e Superessenciais que os casos de dependência causados pelo OxyContin eram raros e que os pacientes conseguiam tolerar doses altas durante semanas a fio. Claro que isso não era verdade. Mas os médicos dos grupos Essenciais e Superessenciais não eram tão rigorosos na exigência de provas para os convencer, como os dos grupos nos decis de 1 e 7. Os médicos do género de Michael Rhodes não iam contrastar os factos apresentados pelo seu DIM preferido com os dados da Journal of the American Medical Association. 

Assim, o OxyContin ganhou uma década extra de vida. Muitos mais pacientes haveriam de ficar viciados. Na rua, era conhecido como o “Rolls Royce” dos opióides, por produzir um efeito tão suave. A Purdue intensificou a sua campanha. Os grupos Essenciais e Superessenciais reagiram bem. As vendas de OxyContin atingiram os três biliões de dólares ao ano. Depois veio a reformulação, tornando o comprimido praticamente impossível de esmagar e inalar, como os consumidores vinham fazendo há uma década. Por isso, as pessoas que tinham estado viciadas em OxyContin mudaram para a heroína. Depois passaram para o fentanil. E finalmente, passaram do fentanil para uma qualquer combinação destas substâncias, narrativas, superdisseminadores e proporções de grupo  misturada com tranquilizantes e drogas de uso veterinário e tudo o mais que houvesse à mão. Chegados a inícios da década de 2020, a epidemia de opióides que começara em 1996 com a introdução do OxyContin estava a ceifar as vidas de quase 80 mil americanos por ano.  

Passadas duas décadas de pandemia, essa linha já deveria estar a descer e não a subir. 

«Tenho tentado perceber se havia – se há – alguma coisa que pudesse ter feito de maneira diferente, sabendo o que sabia então e não o que sei agora», disse Kathe Sackler. Lembram-se desta citação logo no início do livro? Depois completou, «E devo dizer que não.»

É muito difícil aceitar isto. Mas é igualmente difícil aceitar a história que contamos a nós próprios de que não somos minimamente responsáveis pelas epidemias que nos rodeiam – que surgem do nada e que nos devem apanhar sempre de surpresa.  

As epidemias têm regras. Têm limites. São influenciadas pelas narrativas – e somos nós que criamos as narrativas. Mudam de tamanho e de forma quando atingem um ponto de viragem – e é possível saber quando e onde se encontram esses pontos de viragem. São condicionadas por uma série de pessoas, e essas pessoas podem ser identificadas. As ferramentas necessárias para controlar uma epidemia estão sobre a mesa, mesmo à nossa frente. Podemos permitir que as pessoas sem escrúpulos se apoderem delas. Ou podemos nós mesmos pegar nelas e usá-las para construir um mundo melhor.