Menos de 24 horas depois do anúncio de que Trump tinha testado positivo para a Covid-19, a Casa Branca anunciou que o presidente seria hospitalizado, falando do internamento no Hospital Militar Walter Reed como uma precaução. Agora, sabe-se que o chefe de Estado recebeu um tratamento geralmente administrado em casos graves de coronavírus. Donald Trump, aos 74 anos e com mais de 100 quilos, é considerado clinicamente obeso – dois fatores que o colocam num grupo de risco.
Ainda na própria Casa Branca, no dia 2, o presidente norte-americano recebeu uma dose forte (oito gramas) de um tratamento experimental da empresa de biotecnologia Regeneron. Apesar de este produto não estar autorizado para uso de emergência pela entidade reguladora do mercado farmacêutico dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration (FDA), as empresas podem ter acesso ao fármaco através de uso “por compaixão” se as outras opções de tratamento tiverem falhado e houver a possibilidade de o paciente morrer sem ter experimentado o medicamento, escreve o The New York Times (NYT).
Foi nesse regime de “compaixão”, da lei "Right to Try" (a lei "Direito a Experimentar", que o próprio presidente aprovou em 2018), que Trump teve acesso ao 'cocktail' da Regeneron, que tem na sua base dois anticorpos (REGN10933 e REGN10987) produzidos em laboratório para neutralizar este coronavírus.
No passado dia 2 de outubro, o presidente e chefe executivo da Regeneron, Leonard S. Schleifer, afirmou que o corpo médico de Trump pediu permissão para usar o medicamento – garantindo que não foi a única pessoa a pedir o fármaco, escreveu o NYT.
Um 'cocktail' experimental para o presidente
Foi já no hospital militar que o presidente foi tratado com o ‘cocktail’ experimental de anticorpos sintéticos, uma aspirina diária (para a febre), zinco mineral e vitamina D (para melhorar o sistema imunitário), famotidina (que diminui a quantidade de ácido produzido pelo estômago) e melatonina (usado para regular o sono, segundo o Infarmed).
Como nas últimas 72 horas o presidente não teve febre nem queixas respiratórias, reportou o médico Sean Conley aos jornalistas, a equipa médica do dirigente deu alta a Donald Trump no dia 5 de outubro.
O médico avançou que Trump recebeu ainda uma terceira dose de Remdesivir antes de abandonar o hospital e uma quarta quando chegou à Casa Branca (bem como dexametasona, um corticóide para casos graves que comprovadamente reduz a mortalidade ao combater inflamações que podem comprometer seriamente os pulmões e outros órgãos vitais, que já tomava desde dia 3).
Porém, o foco deste artigo será no 'cocktail' de anticorpos. Trata-se de um tratamento experimental para a Covid-19 e foi desenvolvido pela biotecnológica americana, Regeneron Pharmaceuticals. Segundo a empresa, o tratamento tem sido bem-sucedido em infetados não hospitalizados e não tem apresentado efeitos secundários.
Segundo a Regeneron, o ‘cocktail’ de anticorpos acelera a recuperação – os sintomas nos pacientes desapareceram numa média de 6 a 8 dias, comparado com os 13 dias que demoraram os voluntários que receberam um placebo.
De acordo com o NYT, a dose que Trump recebeu é a maior de duas doses que a Regeneron está a testar com pacientes positivos à Covid-19.
Num vídeo divulgado no passado dia 7 de outubro no Twitter, Trump, mesmo baralhando o nome do medicamento com o nome da empresa que o produz, transmitiu que o fármaco da Regeneron foi "a chave", uma cura, de entre a medicação que tomou e que se sentiu bem imediatamente depois de o tomar. O presidente pretende que este tratamento esteja disponível urgentemente e de forma gratuita a toda a população.
Segundo o NYT, a Regeneron tem um acordo com o Departamento da Defesa americano para distribuição de 300 mil doses do medicamento contra a Covid-19 e a empresa recebeu 500 milhões de dólares do governo para desenvolver e produzir o seu produto, antes de os testes clínicos acabarem. Para isso, em agosto, a empresa anunciou que se ia juntar a uma empresa maior, a Roche, e que o acordo vai levar a que a quantidade produzida de REGN-COV2 mais que triplique.
Se os testes revelarem que o medicamento é seguro, a Regeneron estará a cargo da distribuição do REGN-COV2 nos Estados Unidos e a Roche será responsável por fazê-lo fora desse país.
Para além do medicamento contra a Covid-19, a Regeneron desenvolveu outros seis medicamentos aprovados pela americana FDA, e tem mais de 25 em fase de desenvolvimento e teste, alguns em colaboração com outras entidades. No ano passado, a revista americana sobre negócios Fortune elegeu a Regeneron Pharmaceuticals como uma das 100 Melhores Empresas Para Trabalhar.
Schleifer, o neurologista que pegou numa startup e nunca mais a largou
Leonard S. Schleifer faz parte então desta dupla de médicos por detrás do tratamento de Donald Trump. Nascido em 1953, viu o pai produzir camisolas em Queens, Estados Unidos, um negócio que geria desde a Grande Depressão, mas o seu sonho era ter uma carreira na medicina.
O pai, Charles Baker Schleifer, lutou ainda contra os nazis como decifrador de códigos durante a Segunda Guerra Mundial, segundo o obituário feito pelo NYT. E porquê falar do pai de Leonard S. Schleifer? Foi do pai que Leonard ouviu que "a educação é a arma com que se luta contra o mundo" e que não há riqueza na vida sem saúde. Este último conselho deve ter acompanhado o filho porque Schleifer tornou-se o fundador, presidente e diretor executivo da Regeneron, que forneceu o 'cocktail' de anticorpos com que Donald Trump foi tratado.
A relação deste médico com o agora presidente dos Estados Unidos não é de agora. Segundo o NYT, já se conhecem de forma casual há anos, tendo Schleifer sido membro do clube de golfe de Trump, no Condado de Westchester, em Nova Iorque.
De acordo com a revista Forbes, Schleifer estudou na Universidade de Cornell até atingir os graus de MD (do inglês Doctor of Medicine, ou seja médico) e PhD (Doctor of Philosophy, que poderá ser o equivalente a um doutoramento) em Farmacologia, na Universidade de Virginia, onde o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1994, Alfred Goodman Gilman, foi seu professor. Mais tarde, Schleifer voltou à Faculdade de Medicina Weill Cornell, em Nova Iorque, não na qualidade de aluno, mas como professor de neurologia.
Como médico licenciado, certificado em Neurologia pelo Conselho Americano de Psiquiatria e Neurologia, trabalhou como neurologista antes de se tornar empreendedor e fundar a Regeneron.
A certa altura, Schleifer reparou que uma série de artigos científicos que lia eram publicados por uma empresa denominada Genentech. "Quem são estes? Não são uma universidade...", perguntava-se. Depois de investigar e perceber que era uma empresa de biotecnologia, Schleifer ligou ao antigo professor e amigo Alfred G. Gilman e confesso-lhe que a ideia de uma empresa a fazer bom trabalho na ciência lhe era "intrigante". "Talvez devêssemos começar uma empresa no campo da neurologia e neurobiologia", disse ao professor, que estava no Texas. Gilman foi dizendo a Scheifer para voltar para o laboratório e deixar de pensar nesse "absurdo", como podemos ouvir o próprio Scheifer relatar no site da empresa.
Contudo, processo de convencimento ao Nobel Gilman não funcionou muito bem. "O que me parecia é que havia um campo [de estudo] aberto", dizia Scheifer. E foi com esse pensamento e com a filosofia de valorizar a ciência — em vez de ter "pessoas dos negócios a explorar os cientistas" — que tomou a decisão de avançar.
"Depois de decidir que criar uma empresa era o que queria fazer, decidi que tinha de pensar em como 'pôr as mãos' em algum dinheiro", diz Schleifer noutro áudio no site da empresa. Depois de um acordo rabiscado num guardanapo de um restaurante chinês em Manhattan, Schleifer convenceu o banco de investimento Merrill Lynch a investir um milhão de dólares na empresa.
Em 1988, nasce então a Regeneron - das palavras "regenerating neurons" (em português, regenerar neurónios). Passado um ano, o fundador Schleifer procurava um parceiro.
Yancopoulos, o 'caçador de medicamentos'
Na mesma rua de Queens onde vivia Schleifer, crescia George D. Yancopoulos. Não se conheceram até o trabalho de Yancopoulos ser recomendado a Schleifer e se encontrarem num restaurante italiano. Mas já lá vamos.
Nascido em 1959, o pai de Yancopoulos era um imigrante grego que veio para os Estados Unidos na esperança de reconstruir a fortuna que o seu pai tinha perdido para os nazis quando foi, segundo a Forbes, mantido escravo na Turquia antes de escapar e construir algumas das primeiras centrais elétricas gregas.
Da Bronx High School of Science, especializada em ciência e ciências sociais, saiu como um alumnus notável e da Universidade Columbia, em Nova Iorque, com o grau de MD e PhD. Desde 2004 que faz parte da Academia Nacional de Ciência, dos Estados Unidos.
Num restaurante italiano no Condado de Westchester, em Nova Iorque, teve lugar a contratação para a Regeneron. Yancopoulos apareceu com o pai para a conversa. "O pai dele”, disse Schleifer reportado pela Forbes, “queria entrevistar-me, em vez de eu convencer o George”. Facilmente percebemos que houve um “sim” do pai de Yancopoulos porque é esta a dupla de médicos que gere a Regeneron, agora com mais colegas – vários deles médicos também.
Yancopoulos conseguiu o espaço e os recursos para investigação na área, que mantém até hoje naquela que a Forbes classificou como uma das “empresas mais inovadoras do mundo”. E a revista não deixou de ter uma nota especial para este cientista: descreveu Yancopoulos como um dos “mais prolíficos ‘caçadores de medicamentos’ da sua geração”.
Foco nos cientistas e menos burocracia
Do pensamento de Schleifer de ter uma empresa em que a administração trabalha para os cientistas em vez de o contrário, a empresa passava a ter dois médicos como fundadores: Leonard S. Schleifer e George D. Yancopoulos.
Na Regeneron desde 1989, Yancopoulos ocupa o cargo de Chefe Científico e no site da empresa podemos ouvir os dois fundadores a conversar sobre o início da Regeneron e a diferença entre trabalhar numa empresa e o trabalho de investigação no mundo académico, onde ambos passaram muito tempo.
"Comecei a aperceber-me do poder do que podíamos fazer quando não tínhamos burocracia e que um grupo pequeno de pessoas em que todos se conheciam estavam mesmo responsáveis pelo trabalho e podiam tomar decisões rapidamente - ao contrário da academia, em que não sabemos quem controla o quê por causa da burocracia", diz Yancopoulos.
Quando a saúde é boa para a carteira
Com 2020 a entrar no seu último trimestre, os dados ainda se estão a alinhar, mas é possível consultar o relatório do segundo quarto de 2020, que diz que a Regeneron teve um aumento de 24% nos lucros em relação ao período homólogo, o que significa lucros de 1,95 mil milhões de dólares - cerca de 1,6 mil milhões de euros.
No site, Leonard S. Schleifer, o presidente da empresa, escreve que está "muito orgulhoso do facto de a equipa da Regeneron continuar conseguir progressos para os pacientes, apesar dos desafios significativos da pandemia de Covid-19", referindo-se ao avanço com a REGN-COV2, o 'cocktail' de anticorpos para a Covid-19.
Revela ainda neste relatório que chegaram às últimas fases dos estúdios clínicos "em tempo record" e que estão a trabalhar para assegurar que o medicamento esteja "disponível no final deste ano".
Se quisermos ter uma ideia do todo, o Relatório Anual de 2019 mostra que a empresa fez 7,9 mil milhões de dólares nesse ano, o equivalente a cerca de 6,6 mil milhões de euros. É um aumento de 18% em relação a 2018.
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