As festividades começam com um cortejo, que acompanha todo o circuito da cauda da Serpente, o signo que representa 2025 para os chineses. Vindo do mercado tradicional, o cheiro da comida chama cada vez mais pessoas, que acabam por se juntar às filas intermináveis para provar os petiscos. Lisboa vibra com os ritmos orientais, o artesanato, os trajes coloridos e os disfarces míticos, e para para aprender com as crianças e jovens que desfilam.  

“O Ano Novo Chinês é como o Natal para os portugueses”.Júlia, Centro de Serviço de Apoio à Comunidade Chinesa em Portugal

Catarina e Sofia atuaram durante a manhã de sábado com uma dança encenada. Em representação do Centro de Línguas e Culturas Shumin, as meninas vestiam trajes regionais azuis e brancos, “que nos deixam sempre belas”, apontam ao SAPO24, a sorrir, enquanto tiram fotografias com os curiosos que passam por ali. 

ano novo chinês
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Na feira cultural que rodeia o Jardim da Alameda Dom Afonso Henriques, são vendidas peças de porcelana, vestidos chineses e dados a provar chás, bolachas da sorte e tingstao, uma cerveja chinesa. Vêem-se ainda pessoas a desenhar caracteres chineses e a pintar cartazes com mensagens de ano novo. Todos os que participam usam uma coroa de serpente na cabeça, e pedem boa sorte para o ano que chega. 

Esta é “a maior festa da comunidade chinesa”.Chen, Associação Festival da Primavera

Depois do almoço, o palco enche-se de associações para a apresentação de recolhas etnográficas das várias regiões da China. Dança, música, família e tradição dão força à celebração, também conhecida como “Festa da Primavera”, ou Setsubun. E, assim, Lisboa despede-se do inverno e dá as boas-vindas à nova estação. 

Uma festa sobre "família e união"

A tradição é antiga e remete para a astrologia: o ano começa no início do ano lunar, ou seja, na última noite da lua nova mais próxima do início da primavera, mas a data muda a cada ano, uma vez que o calendário lunar é mais curto. Para os ocidentais, este ano, a festa calha a 29 de janeiro de 2025 e dura até 17 de fevereiro de 2026, dia do Festival das Lanternas.

A serpente significa “renovação, transformação e introspeção”.Margarida Mascarenhas, Museu do Oriente

Tal como nas festividades religiosas em Portugal, Júlia, do Centro de Serviço de Apoio à Comunidade Chinesa em Portugal, explica que o momento representa os valores de “família e união”. Para os filhos e familiares que estão no estrangeiro, “significa regressar e juntar-se à festa”. “Juntamo-nos sempre em família neste último dia, isso é o mais importante, e depois vamos celebrar com amigos e fazer uma grande festa”, conta ao SAPO24

É esse o sentimento que se vive naquela praça, onde todos se juntam para conhecer mais sobre a cultura chinesa e celebrá-la. Entre o público, trocam-se votos de bom ano em várias línguas e reencontram-se amigos. 

A cultura chinesa "não se perde, mesmo do outro lado do mundo”.Júlia, Centro de Serviço de Apoio à Comunidade Chinesa em Portugal

“Este ano é o Ano da Serpente, também conhecido como o Pequeno Dragão, que simboliza a vida, a sabedoria e a boa sorte na cultura tradicional chinesa”, refere Camila Jiang, do departamento de comunicação da Embaixada da China. Apesar de os chineses em Portugal estarem no estrangeiro, “todos os anos, no Ano Novo Chinês, sentam-se com os seus familiares para fazer gyozas, colocar dísticos do Festival da Primavera e ver a Gala do Ano Novo Chinês”.

Também a comida e o artesanato são fatores essenciais para a celebração do novo ano. Na Alameda, construíram-se cerca de quarenta barracas com pratos típicos, desde massas fritas e baos (pães recheados), a bolachas e doces. Os comerciantes destacam a importância de dar a conhecer aos portugueses e aos turistas a cultura chinesa, “que não se perde mesmo do outro lado do mundo”, confessa Júlia.  

Os rituais de Ano Novo

No entanto, celebrar em Lisboa, ou na China, é “um pouco diferente” para Júlia, principalmente pelo tempo que tem para dedicar ao Ano Novo.  “Como vocês têm férias para gozar o Natal, nós também temos no Ano Novo na China, cerca de uma ou duas samanas. Toda a gente fica em casa, não trabalha, e às vezes vai viajar. Mas quando estamos em Portugal não podemos fazer isso. Então aproveitamos o fim de semana para fazer as celebrações”.

Por isso, a festa só acontece sábado e domingo, mas as decorações ficam expostas durante várias semanas. Para o mês do Ano Novo, a Associação Festival da Primavera pendurou lanternas na avenida Almirante Reis, até à Alameda. De Santa Apolónia, até ao Terreiro do Paço, também estão hasteadas bandeiras do festival.

Mesmo assim, estar longe de casa não impede Júlia de trazer um pouco da China para Portugal, quer nos pratos que cozinha ao jantar, como nas tradições que mantém fielmente. 

“Para a Europa, o dragão não é tão brilhante, e, do outro lado do mundo, vêem-no como um animal mítico". Margarida Mascarenhas, Museu do Oriente

À mesa, os dumplings e os nian gao, bolos de arroz chineses, são indispensáveis. Júlia explica que tudo o que comem tem um significado e pretende evocar um ano “próspero e feliz”: “nian significa “ano”, e gao “acrescentar ou crescimento”, ou seja, se os comemos estamos a acrescentar algo ao nosso ano. As crianças pedem altura, para crescer. Nós pedimos paz e felicidade”. 

Nas casas chinesas, o peixe também é uma presença obrigatória na refeição de ano novo. A pronúncia da palavra peixe, em chinês, significa abundância, remetendo para a ideia de prosperidade e sucesso.

Tal como em Portugal, a cor da roupa é uma preocupação, sendo o vermelho a cor de eleição, tal como o fogo de artifício, que espanta os espíritos. O vermelho está também presente na comemoração do “ano certo”, que acontece quando o signo do novo ano é o mesmo do ano em que cada um nasceu.

Júlia só vai viver o ano certo quando o signo voltar a ser o Carneiro, o que acontece de 12 em 12 anos. Nesses anos, durante os 12 meses, os chineses vestem-se com um apontamento de vermelho, para que tenham sorte. “Se não o fizerem, o ano pode correr mal”, exclama, a rir. 

“É a herança da cultura chinesa, o suporte emocional das saudades”.Camila Jiang, Embaixada da China

Os anos certos são muito importantes para os chineses, “principalmente os comerciantes, que desejam riqueza e sucesso”. Num ano novo normal, Júlia explica que basta vestir um apontamento vermelho.

Outro dos rituais que seguem à risca é a decoração das lanternas chineses. “Geralmente, os chineses deixam as lanternas ficar durante um período grande, pelo menos o mês de Ano Novo. Depois existem até algumas lojas chinesas que as expõem o ano inteiro, mas isso é mais típico na China”. No último dia, as pessoas soltam-nas no céu ao mesmo tempo que pedem desejos para o novo ciclo.

Também se colocam cartazes vermelhos, com caracteres chineses na vertical e na horizontal, por cima das portas. Cada folha deve ter escrito um objetivo diferente, como, por exemplo, “nesta casa todos vão ser felizes no novo ano”, explica Júlia. 

Nesta altura, os idosos, um pilar cultura chinesa, enviam envelopes vermelhos com mensagens aos mais novos, os lai-si, a desejar-lhes um ano feliz. Com o bilhete também costuma ser dado dinheiro, para concretizar esses votos.

“É um dos únicos dias em que todos os membros da família se reúnem e fazem um jantar em conjunto”. Júlia, Centro de Serviço de Apoio à Comunidade Chinesa em Portugal

O vermelho está também presente nos trajes dos dançarinos, que evocam os símbolos do dragão e do leão nos seus movimentos. Margarida Mascarenhas, técnica do serviço educativo do Museu do Oriente, lembra que “para a Europa, o dragão não é tão brilhante, e, do outro lado do mundo, vêem-no como um animal mítico, auspicioso, o que mostra que há entendimentos diferentes sobre a mesma realidade”.

A serpente remete para as ideias de “renovação, transformação e introspeção”, explica, “ o que significa que este ano temos de estar mais concentrados, planear antes de agir”. Dos 12 signos, a serpente evoca as ideias de novidade e movimento, sempre associadas à prosperidade conservada pela cultura chinesa. 

O Ano Novo Lunar do outro lado do mundo

Júlia esteve presente nas comemorações, a trabalhar numa das barracas montadas na lateral da avenida. Vende boba tea, um chá aromatizado com pequenas bolas de gelatina no fundo. Para a jovem, a Festa de Ano Novo é, para os chineses, “como o Natal para os portugueses”.

O objetivo é atrair boa sorte, união e prosperidade, mas, em Lisboa, o significado é mais profundo, e procura também celebrar a cultura dos mais de 10 mil chineses residentes na cidade. Esta é “a maior festa da comunidade chinesa”, refere Chen, representante da Associação Festival da Primavera Chinesa.

"Acabamos todos por ganhar maior entendimento uns sobre os outros e maior proximidade através do conhecimento”.Margarida Mascarenhas, Museu do Oriente

O número remete para 2021, ano em que, segundo o Gabinete de Estratégias e Estudos, a comunidade chinesa representava 3,29% da população portuguesa e 1,83% dos lisboetas. Este fim de semana, juntaram-se ao resto da cidade para celebrar a passagem de ano, aludindo à diversidade e multiculturalidade que caracterizam as ruas da capital. 

Esta atividade realiza-se em Portugal há 12 anos, e “é a herança da cultura chinesa, o suporte emocional das saudades”, descreve Camila Jiang. A organização olha para estas comemorações como uma oportunidade de “dar a conhecer aos portugueses mais sobre a cultura chinesa e o estilo de vida chinês, promovendo a interação entre chineses e locais, até estabelecer uma amizade”.

A 12ª edição do festival é a primeira realizada ao vivo desde a pandemia, “sem tendas e offline”, revela Chen. “É um dos únicos dias em que todos os membros da família se reúnem e fazem um jantar em conjunto”. 

“Desde que respeitem a cultura local, e sejam bem organizadas, estas atividades são o lugar ideal para que consigamos desenvolver a nossa cultura”.Chen, Associação Festival da Primavera

As programações deste fim de semana são da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, da Embaixada da República Popular da China e da Associação Festival da Primavera. 

Olhar para a integração com novos olhos: “o apoio não é suficiente”

Na verdade, Chen confessa que os chineses “nunca se sentem longe de casa, porque foram bem recebidos pelos portugueses”. Estas comemorações são fruto da vontade que têm de “demonstrar à casa onde estamos a viver um bocadinho da nossa tradição, da nossa cultura”, diz.

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, reforça esta ideia durante a intervenção da manhã de sábado, dirigida aos “portugueses, chineses e pessoas de outros países que aqui estão”: “o que fazem todos os dias contribui para a construção da cidade de Lisboa como uma cidade de futuro, união, paz e tolerância”. 

“Só o espetáculo ou a feira gastam muito dinheiro, era importante que empresas portuguesas estivessem interessadas em se juntar, se quisessem”.Júlia, Centro de Serviço de Apoio à Comunidade Chinesa em Portugal

Aos jornalistas, disse que os lisboetas são “grandes amantes da diversidade” e destaca a importância da presença da comunidade chinesa na “evolução tecnológica, comércio e investigação para o crescimento do país”.

Chen acredita que esta é também uma forma de integração. Tal como Margarida Mascarenhas, que o relata do ponto de vista de quem recebe diferentes culturas no seu país, “acabamos todos por ganhar maior entendimento uns sobre os outros e maior proximidade através do conhecimento”. Mas sem apoios, isso não é possível. 

Júlia lembra que só as instituições, coletivos e associações chinesas têm investido na realização de atividades culturais, essenciais à inclusão dos povos emigrados. “Só o espetáculo ou a feira gastam muito dinheiro, era importante que empresas portuguesas estivessem interessadas em juntar-se, se quisessem”, defende. O apoio que têm da Câmara Municipal de Lisboa, traduz-se maioritariamente em material em recursos, e, para Júlia, “não é suficiente”.

O Museu do Oriente é, para Margarida Mascaranhas, uma das instituições que visam suprir essas falhas. Para a técnica, o objetivo é “representar a cultura chinesa e transformar o museu num ponto de encontro em que nós, de facto, encontramos as outras culturas, mas também nos encontramos a nós”. 

Assim, remete para a ideia de diferentes comemorações de países diferentes se aproximarem pelas características que têm em comum, tal como o Natal português e o Ano Novo chinês. A reprodução de atividades culturais de outros países apaga a diferença e promove a integração de pessoas como a Júlia, que durante o mês de fevereiro se sente novamente “em casa”. 

“Lisboa, para nós, e no meu entender, é uma cidade tolerante”, e, por isso, Chen acredita que continuar com uma posição “de braços abertos para receber culturas diferentes” só pode ter consequências positivas. Afinal, “desde que respeitem a cultura local, e sejam bem organizadas, estas atividades são o lugar ideal para que consigamos desenvolver a nossa cultura”, mesmo do outro lado do mundo.

Que outras comemorações estão a acontecer?

O Museu do Oriente desenhou um programa com atividades durante os 15 dias de festa. Até 8 de fevereiro, estão a acontecer visitas e oficinas dedicadas às práticas e costumes típicos chineses, baseadas nos rituais em exposição.

Para as crianças, os animais do zodíaco chinês, os ritmos, tradições e cores da boa sorte são alguns dos temas das atividades pensadas.  Para os mais velhos, Margarida Mascarenhas destaca uma exposição sobre o Japão que, apesar de celebrar o ano novo segundo o calendário gregoriano, “acaba por ter influências da cultura chinesa”, principalmente na forma como olham para o zodíaco.

Além disso, no dia 2, no Porto, também se vão realizar celebrações do Ano Novo.

Em dezembro de 2024, o Ano Novo Chinês foi oficialmente inscrito na Lista do Património Cultural Imaterial da UNESCO, com presença em todo o mundo, com especial destaque para os países asiáticos e da diáspora chinesa.

*Reportagem editada por Beatriz Cavaca