O que nos pode salvar a todos continua a ser o mesmo. Que eles, quaisquer que sejam, também amem as suas crianças
Para aqueles que se lembram, os anos 90 começaram assim. Se quisermos ser ainda mais precisos, janeiro de 1991 começou assim. "Assim" tem neste contexto uma amplitude significativa. "Assim" significa em estado de guerra, "assim" significa de olhos postos no Médio Oriente, "assim" significa também - num tempo em que a internet não moldava as nossas vidas - a primeira experiência em Portugal de longas horas televisivas com comentários de analistas sobre o que iria ser do mundo depois de uma coligação internacional mandatada pela ONU e liderada pelos Estados Unidos ter entrado no Kuwait para expulsar as tropas de Saddam Hussein que em agosto de 1990 tinha invadido o país.
Para quem não se lembra ou nem sequer era nascido, uma rápida síntese. Saddam Hussein invadiu o Kuwait em agosto de 1990 como medida de força para obrigar um pequeno Estado rico em petróleo a reduzir a produção. Objetivo: conseguir um preço de 18 dólares por barril, um valor acima dos 10 dólares para que tinha baixado em função do aumento de produção do Kuwait e também dos Emirados Árabes Unidos. O Iraque, até então país "amigo" dos Estados Unidos, esperava assim garantir aumento de receitas nos cofres de Bagdad que vinha de uma longa guerra e se encontrava depauperado. Longa guerra com quem? Irão, arquirrival americano, precisamente, entre 1980 e 1988.
George Bush, o pai não o filho, era presidente dos Estados Unidos, o mesmo país que durante os anos da guerra Irão-Iraque tinha apoiado o país de Saddam Hussein contra o país do Ayatollah Khomeini que em 1979 tinha deposto Mohammad Reza Pahlavi, o Xá da Pérsia, aliado de longa data dos americanos, e transformado o país numa república islâmica que apontava a América como o seu principal inimigo. Por curiosidade foi também em janeiro, 16 de janeiro de 1979, que o Xá abandonou o país para não mais voltar, tendo o Ayatolla Khomeini regressado do exílio a 1 de fevereiro seguinte e instituído a república islâmica a 11 de fevereiro.
E foram os Estados Unidos a liderar a operação que ficou conhecida como "Tempestade do Deserto". A operação militar durou pouco mais de um mês e nomes de armas como "scuds" e "patriots" (mísseis, respetivamente, de fabrico soviético e americano) entraram nas conversas dos portuguesas com a familiaridade de discussões mais triviais como as que se tinha sobre a bola - sim, isso não mudou assim tanto - ou o último episódio da novela. Num mundo sem Netflix, foi também uma televisão americana que entrou porta dentro um pouco por todo o mundo, a CNN.
A 28 de fevereiro de 1991, as forças iraquianas foram derrotadas e esses dias de guerra deixaram para trás um cenário de poços de petróleo do Kuwait incendiados cujos prejuízos se traduziram em indemnizações a ser pagas pelo Iraque. Um dos maiores custos da guerra foi ambiental - a História sabe ser irónica. O país de Saddam só em 1996 teve autorização internacional para voltar a exportar petróleo e nessa altura foi constituído um fundo em que 5% das receitas que angariava se destinavam a pagar ao Kuwait.
Aconteceu há 29 anos. Num mundo que sendo tão igual em tantas coisas era tão diferente. Num mundo em que a União Soviética se tinha desmoronado, em que os Estados Unidos eram a inquestionável potência mundial mas onde, ainda assim, a invasão de um país levava o selo da ONU e era suportada por uma coligação internacional. Num mundo em que, apesar da CIA, apesar do petróleo, apesar da indústria das armas, apesar das múltiplas traições no e ao Médio Oriente, havia uma ideia infantil dos bons e dos maus. Num mundo em que se acreditava, de alguma maneira, que era possível concertar o que estava errado.
Em janeiro de 2020 estamos entregues a outra sorte. Não acreditamos nem nuns, nem noutros. Não conseguimos ver qualquer espécie de bem nem de um lado, nem de outro, nem de qualquer outro. Alguns, demasiados, procuram salvar-se dessa sorte enfeudando-se sem pensar, sem ouvir, sem tão somente olhar, nas verdades únicas que escolheram para si próprios. A tal "bolha" é um bunker que os protege de toda esta sorte de ser contemporâneo de um tempo em que tudo é confuso, tudo é difuso, tudo e nada mete medo.
No auge da guerra fria, um velho conhecido dos palcos portugueses entoava uma música do seu tempo, daquele tempo, cujo refrão sussurrava "But what might save us, me and you | Is if the Russians love their children too". Tirem os russos, coloquem lá toda a espécie de gente do mundo, e talvez assim consigamos ir dormir sem esta aflição sobre se o mundo estará a rodar no dia seguinte.
O meu nome é Rute Sousa Vasco e estas foram as aflições de um dia que hoje foi assim, como podem ver pela cronologia que todos os dias vos trazemos.