Sem sabermos, todos nos tornámos um pouco agentes secretos que tentam impedir a propagação de um vírus. Sempre que vamos às compras tornamo-nos numa espécie de 007 que tem de se munir de várias técnicas para não deixar vestígios em forma de gotículas que possam contaminar outras pessoas.
Tudo começa com a identificação da necessidade de ir às compras. Falta papel higiénico? Não, ainda há 650 rolos em casa. Falta pão e leite? Sim, mas isso não é essencial. Faltam doces, bolos e chocolates? Eh pá, então temos de ir às compras que se dá a carência antes de ir para a cama a noite vai ser de insónias. Já que vamos às compras, mais vale a aproveitar para fazer a lista detalhada de tudo o que precisamos. Imaginamos a planta do supermercado na nossa cabeça e traçamos o caminho mais rápido para não termos de andar às voltas. Isto é special ops, entrar e sair, sem deixar rasto. Vamos munidos do nosso equipamento especial que é a máscara e luvas, tiramos finalmente a calça de fato de treino que servia de pijama há três dias para vestirmos uma roupa que será incinerada mal cheguemos a casa com missão cumprida. Chegamos ao supermercado e inspiramos fundo uma última vez antes de entrarmos. Passo apressado e desviando das pessoas, sustendo a respiração sempre que passamos por alguém, vamos fazendo o trajecto planeado. Durante a nossa missão em que não temos licença para matar, sentimos vontade várias vezes. Sentimos vontade de matar o senhor que está a agarrar todas as maças e a encostá-las ao nariz e a voltar a meter no cesto as que não lhe cheiram bem. Apetece chegar lá e dizer que a covid tem como sintoma a perda de olfacto e que se calhar mais vale ir para casa fechar-se sem nunca mais sair. Sentimos vontade de refilar com a pessoa que não sabe funcionar no sistema métrico e que acha que um a dois metros de distanciamento é uma ou duas polegadas. De repente, dá-nos uma comichão no nariz, o que fazer? Coçar está fora de questão, já pegámos em vários produtos e apesar de estarmos de luvas não as desinfectámos ainda. Fazemos aquela dança a tentar coçar o nariz com a cara, tal como quando tentamos coçar a zona da genitália com a própria perna, mas é impossível. Tentamos resistir, mas em vão e acabamos por coçar com o pulso ou o antebraço.
Olhamos para o cesto e para a lista e percebemos que já temos tudo o que precisamos. Vamos para a fila e mantemo-nos afastados da pessoa da frente, mas vemos que a pessoa que se coloca atrás de nós é das que não tem muita orientação espacial. Olhamos de soslaio, em tom de desdém que é mais difícil de veicular com a máscara na cara. A pessoa percebe e afasta-se um passo e nós ficamos mais descansados porque o bicho não tem asas. Nisto, ouve-se alguém a tossir. Toda a gente vira a cabeça em busca do terrorista como se tivesse acabado de explodir uma bomba. Meio encolhidos, ajeitamos a máscara e rezamos para que não tussa ninguém mais perto. Pagamos as compras, agradecemos ao trabalhador da caixa com mais simpatia do que é habitual porque pelo menos durante as próximas semanas vamos valorizar mais o que fazem, até nos esquecermos e voltarmos a ser antipáticos. Chegamos a casa, descalçamo-nos à porta, queimamos a roupa, tiramos a máscara e as luvas, lavamos e desinfectamos as mãos, passamos lixa na cara, e lixivia nas virilhas e vamos arrumar as compras. Passamos os tomates por vinagre e deixamos a alface já temperada com álcool gel. No fim, já depois de tudo lavado, abrimos uma cerveja para celebrar e percebemos que não desinfectámos a garrafa. É uma missão impossível.
Para ver: A série "After Life", na Netflix.
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