Marty Tankleff tinha apenas 17 anos quando viu o seu futuro cancelado. Condenado em 1990 a 50 anos de prisão pelo homicídio dos seus pais, passou quase 18 anos encarcerado na prisão de segurança máxima Clinton Correctional Facility até ver a sua sentença anulada e a sua inocência comprovada — afinal, terá sido um parceiro de negócio do pai a cometer o crime.

Foram necessários vários recursos judiciais e, acima de tudo, uma fé inabalável para Tankleff recuperar a sua vida. A sua história levou-o a tornar-se advogado, estabelecendo-se como uma referência mundial na luta contra o erro judiciário — com a ajuda dos seus alunos e do seu amigo de infância Marc Howard,  já ajudou a tirar sete homens da prisão. O seu poderoso testemunho é um dos destaques de “From Wrongful Arrest To Rightful Exoneration”, o seminário organizado pela Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica.

O advogado estará entre as 14h30 e as 17h30 de hoje, 21 de maio, no Auditório Carvalho Guerra da Universidade Católica Portuguesa no Porto, acompanhado por outras figuras — presencialmente e em videoconferência — para “para explorar as complexidades do sistema de justiça criminal, em especial o norte-americano, e o impacto que uma condenação injusta pode ter num indivíduo”, como anuncia a organização do evento. Para participar, necessita de fazer um registo, ao qual pode aceder neste link.

Tankleff "viu como é que o sistema falhou para ele e agora tenta utilizar o sistema para ajudar outras pessoas na mesma situação", conta Pedro Miguel Freitas, um dos organizadores do seminário e docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, ao SAPO24. "Depois enveredou pelo caminho da advocacia, e agora tem dedicado a sua vida, no fundo, a sensibilizar para este problema e a ajudar pessoas que estejam na mesma situação, porque infelizmente nos Estados Unidos não é incomum termos pessoas que passam 30 ou 40 anos presas por crimes que não cometeram", completa.

Uma das presenças de peso neste evento é a de Amanda Knox, protagonista de um célebre caso judicial que a levou a passar entre 2007 e 2015 quase quatro anos numa prisão italiana e oito anos em julgamento pelo homicídio de Meredith Kercher. Knox, que se encontrava a estudar em Perugia, em Itália, foi acusada de matar a sua colega de intercâmbio, com quem dividia um apartamento. O seu calvário foi alvo de atenção, servindo de inspiração para livros, filmes e documentários — como o de 2016, da Netflix.

Entretanto ilibada, Knox é hoje jornalista e autora do livro de memórias “Waiting to Be Heard”, escrito sobre a experiência. Além disso, é co-apresentadora do podcast “Labyrinths” com o seu marido Christopher Robinson e membro da ONG Frederick Douglass Project for Justice, que luta pela reforma da justiça criminal e da ética nos media. É também nessa qualidade que se junta à conversa à distância.

Se o caso de Tankleff pode parecer mais distante, já que ocorreu no seio do sistema de justiça norte-americano, houve interesse por parte da organização deste evento em contar com Knox pois a sua situação ocorreu "num país que culturalmente nos é mais próximo, que é a Itália. Por isso é que também havia o interesse de trazer pessoas que tivessem passado por situações semelhantes, mas em países que nos são mais próximos e que nos dizem mais", adianta Pedro Miguel Freitas.

Adnan Syed, retratado no podcast "Serial", ainda aguarda novo julgamento

O tema de Knox também interessa porque demonstrou a capacidade perniciosa que os media têm em imputar culpabilidade numa pessoa que ainda não foi julgada. Anos depois, a norte-americana apontaria o dedo aos meios de comunicação que a "retrataram como uma assassina devoradora de homens".

"Às vezes há uma relação difícil entre os mass media e o sistema de justiça penal, porque as velocidades são diferentes. A população quer imediatismo, quer um acesso à informação que nem sempre o sistema de justiça penal consegue dar. E, infelizmente, mecanismos normais como a constituição de arguido, que está previsto no Código de Processo Penal, são assumidos quase como um rótulo de culpabilidade para essa pessoa. O que, digamos, contraria o objetivo desses mesmos mecanismos", afirma Pedro Miguel Freitas.

Mas os mesmos media também são responsáveis por ajudar a construir os processos de exoneração de algumas pessoas. É o caso de Adnan Syed, que também participa no seminário por videoconferência. Julgado pela morte de uma ex-namorada, Hae Min Lee, quando tinha 17 anos, e condenado à prisão perpétua, o seu caso sempre levantou dúvidas e foi o alvo de uma das mais famosas séries criminais em podcast do mundo, chamada “Serial” — e que viria a revolucionar o género — e de um documentário da HBO. Em 2022, o tribunal decidiu anular a sentença que tinha decretado 23 anos antes, citando as múltiplas falhas da sua condenação.

Syed aguarda novo julgamento em liberdade enquanto trabalha na Prisons and Justice Initiative, organização com a missão de oferecer educação e formação profissional a condenados e a recém-libertados e a apoiar outros condenados injustamente.

Se a atenção de podcasts e séries ajudaram a consciencializar o público para a situação de Syed, o próprio Marty Tankleff diz que, no seu caso individual, "foi a partir do momento em que os mass media pegaram no caso que começou a ter mais esperança numa nova decisão que lhe fosse favorável". "A partir desse momento, com o foco dos mass media, começou a prestar-se mais atenção ao caso e, no fundo, dar razão àquilo que já era evidente para muita gente que estava ligado ao seu processo, que ele não tinha cometido o crime e que tinha sido alguém relacionado com os seus pais", conta Pedro Miguel Freitas.

Além de contar com ex-condenados, este seminário terá também a presença de profissionais experientes em casos de condenação injusta. É o caso de Stephen Braga, advogado que representou Tankleff, assim como Damien Echols, membro do “West Memphis Three”, libertado do corredor da morte através de um acordo. 

Com mais de 40 anos de experiência, Braga “representa habitualmente cidadãos e empresas nos mais importantes assuntos legais, seja lidando com investigações criminais sensíveis ou litigando as consequências dessas investigações em tribunal”, refere a organização. A sua participação, feita à distância, versará sobre estes temas. Já Tara Whelan, advogada de defesa criminal exercendo no Estado e Tribunais Federais de Nova Iorque, estará no Porto para falar nos seus mais de 14 anos de prática.

Em conjunto com Tara Whelan, Marty Tankleff “explorará neste seminário tópicos como a estrutura judiciária, a advocacia, o sistema de recursos estatais e federais no contexto estadunidense, esclarecendo, de forma eminentemente prática, os desafios e obstáculos enfrentados por aqueles que procuram demonstrar a sua inocência”, refere a nota de imprensa do evento.

Um evento que é só "um pontapé de saída" para uma clínica legal.

Ao SAPO24, Pedro Miguel Freitas como “From Wrongful Arrest To Rightful Exoneration” se encontra num projeto mais amplo da Faculdade de Direito da Universidade Católica, que "já algum tempo que estava a pensar criar uma clínica legal". Trata-se assim de "um mecanismo que possa permitir uma interação com a comunidade, responder a questões jurídicas colocadas por cidadãos e isto permitindo também aos próprios alunos terem um contato mais prático com a realidade do direito".

O projeto vai mesmo para a frente, iniciando-se em setembro ou outubro, ou seja, no início do próximo ano letivo. A clínica, porém, é suportada pelo apoio do Innocence Project (ou Projeto Inocência), uma ONG criada em 1992 nos EUA com o objetivo exonerar pessoas que tenham sido condenadas injustamente, através da utilização de testes de ADN — em 2021 já tinha conseguido libertar 300 pessoas — e apelar à reforma do sistema de justiça. Com presença em todos os estados dos EUA e em vários países do mundo, a Universidade Católica pretende assim que "este Projeto Inocência seja o primeiro em Portugal com uma ligação ao Projeto Inocência internacional.

A ideia, adianta Pedro Miguel Freitas, é "avaliar casos que já tenham transitado em julgado, casos criminais em que as pessoas condenadas pela prática de um crime possam reclamar a sua inocência", fazendo uso de prova que possa "ser utilizada para, eventualmente, tentar reverter a decisão condenatória".

"Na sequência de alguns contactos que nós fizemos com o Projeto Inocência com a sede em Nova Iorque, disseram-nos que havia dois advogados, que eram o Marty e a Tara, que estariam a pensar em mudar-se para Portugal e tinham interesse em colaborar com o nosso projeto. E foi um pouco a partir daí que surgiu esta ideia de começar com um conjunto de atividades para dar início ao Projeto Inocência", conta o professor.

A equipa portuguesa, adianta o docente, está já a "começar a recolha e a identificar alguns casos" em que potencialmente tenha havido condenações injustas em Portugal. "Ainda estamos numa fase incipiente porque planeamos começar as nossas atividades oficialmente com a abertura da clínica legal no início do próximo ano ativo, mas já começamos a receber algumas indicações", conta. "E alguém como o Marky e a Tara, que têm uma experiência muito grande, mas também o networking, o contacto de pessoas especialistas a nível mundial nestas questões, eu acho que vão dar um contributo importante também para em Portugal se dar uma nova perspectiva relativamente a esta questão e falar um pouco mais sobre este assunto", completa.

De que temas se deve falar? Apesar dos desafios que a Justiça enfrenta em Portugal, no caso concreto do erro judiciário e da condenação injusta, "mais do que apontar o dedo a uma classe profissional,  temos de começar a olhar para a própria lei como está desenhada", defende Pedro Miguel Freitas. "É preciso ver se os mecanismos de resolução de problemas desta natureza são suficientes. A nosso ver, não são. Temos um recurso de revisão que pode ser utilizado para reverter situações de condenações injustas, mas tem fundamentos muito difíceis de preencher e, portanto, se calhar começa por aí. Tentar olhar para a lei, ver o que é possível mudar e depois para a própria prática judiciária", continua.

Tudo isto, contudo, "implica um estudo mais demorado que nós também vamos realizar", revela, afirmando que o grupo de trabalho a formar-se vai trabalhar de um ponto de vista tanto prático quanto teórico, "olhando para a lei e para o papel que cada interveniente na justiça tem, desde os juízes, os procuradores, os próprios advogados, e ver o que é que é possível melhorar, para evitar situações deste género".